Keith Jarrett, Municipal, Rio, 9 de abril de 2011
d.C. 2011/3
Carlos Irineu da Costa in Música, arte, ensaio, jazz, música

quando você sabe que um improviso terminou? se você toca um instrumento solo, quando você diz ‘acabou’? como você ouve um improviso, um solo, e diz ‘isso foi muito bom’, ou, pelo contrário, você pensa ‘não teve foco’?
levei anos para chegar a estas perguntas. espero que não haja uma só resposta para elas: John Cage escreveu: “vocês me perguntam qual o propósito da Arte; se houver um só propósito e 100 artistas, o que os outros 99 ficarão fazendo?”. é uma das coisas mais relevantes já ditas sobre Arte; não lembro das outras 99 agora.
um improviso termina com um sentimento de ‘closure’, fechamento. isso vale para um texto, um romance, um filme.
quando eu toco, quando eu escrevo, digo que ‘acabei’ (de improvisar, de colocar idéias em um texto) quando um conjunto de sentimentos-sons-palavras parece ter se esgotado. qualquer coisa ‘depois’ me soaria redundante.
você diz que um solo do Keith, ou de qualquer outro músico, foi ‘muito bom’ quando você tem tempo de estrada suficiente para ver uma estrutura (reconhecer padrões) no solo; ver que uma estrutura  - uma música, um tema - foi desenvolvida e, em certo momento, atingiu um ápice, para, depois, chegar a seu fechamento.
eu sei: não é possível dizer como descobrir um ‘padrão’ em um solo, nem definir qual ‘estrutura’ Jarrett estava desenvolvendo a cada peça que tocou; o ‘ápice’ pode ser sentido pelo Municipal inteiro como um “aahh!”, mas não pode ser escrito. e ‘fechamento’… não é ‘quando termina’, mas sim quando você sente, dentro, que algo foi concluído: acabou. aplausos.
a impossibilidade de definições permite que haja várias formas de música, permite a pluralidade que a cultura de massa tenta sucessivamente negar. a cada solo, a cada improviso que nunca se repetirá, Keith Jarrett nega a música como linha de montagem que nos ensurdece, hoje.
preciso dizer duas coisas antes de ‘concluir’: ao entrar no palco, na primeira peça, e, mais uma vez, num momento de irritação durante a segunda metade do espetáculo, Keith puniu a plateia com uma cacofonia desagradável de sons; foi constrangedor, como uma criança dizendo palavrões gratuitos, mas suponho que, naquele momento, tenha sido a forma que ele encontrou para dizer “seus imbecis, eu estou aqui tentando lhes dar algo de belo, algo único, algo que é parte de minha alma e vocês estão tossindo, falando besteiras, alguém tirou uma foto, vocês são crianças mal educadas e eu vou punir vocês”. considero-me punido. (e, não, não adianta argumentar que ‘aquilo’ era música - não era não. era a versão tecnicamente melhorada dos exercícios que faço para aquecer as mãos antes de tocar; perdemos pontos, todos, por não ficarmos em silêncio sepulcral depois da bronca dele para que ele soubesse que, sim, entendemos que havíamos sido punidos)
a outra coisa é que, embora várias peças curtas foram belas, houve apenas duas em que Keith conseguiu alcançar o nirvana musical que tantas vezes ouço nos discos dele, nos improvisos mais longos - o momento em que você percebe que a música foi ‘além’, que houve uma mágica para além da brincadeira de improvisar no formato de um blues de 12 compassos; em dois momentos as Musas se fizeram presentes, deus estava ali, Universos foram criados e existiram durante alguns segundos, o inconsciente coletivo foi tocado. nomes não importam, conceitos não importam, só a música dele importa.
ter estado presente nestes dois momentos é algo que meu ingresso nunca poderá pagar, é um privilégio, é compartilhar por instantes o olhar de alguém capaz de nos mostrar um mundo mais belo.
pouco provável que eu possa agradecer pessoalmente a Keith Jarrett pelo que ficou dentro de mim após aquele concerto, mas posso, ao menos, improvisar usando palavras para dizer a outros parte do que senti.
só este texto não basta, mas este texto é só o que consigo dizer, aqui, agora.

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