O “ser ou não ser” de Hamlet
d.C. 2010/3
Carlos Irineu da Costa in Cinema & Vídeo, Crítica, Escritos

Recebi um mail de uma amiga comentando a tradução de Voltaire para o trecho do monólogo mais comentado / conhecido / famoso de Shakespeare, o “tubiornótitubi”, de Hamlet. Voltaire ‘meteu a mão no texto’ e traduziu-explicando assim:

“Arrête, il faut choisir passer a l’instant / De la vie à la mort ou de l’être ao neant”

… que é mais ou menos o seguinte:

“Pare, é preciso escolher neste instante / Entre a vida e a morte ou o ser e o nada”

Entendo a ousadia de Voltaire, entendo (mas discordo) do privilégio do RAP sobre o sentido, mas não gosto da tradução: não soa como Shakespeare. [1]

Nunca entendi, na verdade, por que este "To be or not to be, that is the question" é lido como se tivesse uma vírgula aí. Não tem, assim como não tem um ponto depois. Shakespeare-através-de-Hamlet diz que a questão de fato é essa – a questão ontológica do ser, de estar presente -, mas o foco me parece estar, sobretudo, no que vem depois do " : ", naquilo que quase ninguém sabe citar. O "ser ou não ser" é uma espécie de preâmbulo para situar o que vem depois:

To be, or not to be: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them?

… que, se eu fosse traduzir, funcionaria assim:

Ser ou não ser: eis a questão:
Nos parece mais nobre sofrer
As dores da ultrajante fortuna
Ou confrontar um mar de problemas
E, enfrentando-os, resolvê-los?

A “questão” é o que vem depois; o “ser ou não ser” é um resumo prévio, é um aviso de que ele vai falar sobre algo que está relacionado a como vivemos, àquilo que decidimos ser [2].

Para mim, a questão de Hamlet re-enuncia a questão central do Zen, ou ainda a questão de fazer ou não análise, ou ainda a versão diluída disso tudo que encontramos, hoje, em inúmeros livros desse gênero disperso chamado de “auto-ajuda”: é a questão de como se colocar frente à vida, de escolher agir e saber que iremos sofrer por isso ou, muito pelo contrário, não agir, como se fosse possível fugir à dor.

Me parece que, ao menos neste trecho, Shakespeare-Hamlet quer apontar para uma possibilidade de que, quando alguém decide se opor ao “mar de problemas”, é possível solucioná-los. Seria olhar apenas para um fragmento de uma obra profundamente filosófica (e literária, e teatral, e poética, e simplesmente bela) e já seria muito.

Não tenho conclusão, aqui. Só queria anotar que me parece que “a questão” é um pouco mais específica e mais profunda do que dizer apenas “ser ou não ser”, até porque “não ser”, a rigor, implica em morrer.

E daqui eu poderei partir, em outro momento, para o “ser” do pungente e lírico filme argentino O segredo dos seus olhos e o “não ser” do arrasador e nada lírico Um homem sério, dos irmãos Cohen. Juntos, os dois têm muito a dizer sobre confrontar problemas ou sofrer as estocadas de um destino ultrajante, dos desígnios de Ha Shem.

E o resto é silêncio. [3]

 

[1] Soa como algo que Sartre pode ter lido e de que pode ter se lembrado, ainda que vagamente, ao dar título a seu ensaio filosófico de 1943, “O ser e o nada”.

[2] Não dá para deixar de notar duas aproximações enormes, aqui e talvez em toda esta peça, mas eu nunca tive tempo – ou conhecimentos, na verdade – para pensar por este caminho, que, contudo, me parece ótimo: a aproximação que existe entre Hamlet e o pensamento muito posterior de Heidegger (que fala sobre o “ser-no-mundo” e o “ser-aqui”) e de Sartre (muito obviamente, o livro-ensaio “O ser e o nada” e seu existencialismo).

[3] Abusando da minha citação favorita de Hamlet, que não é o “ser ou não ser”, é o que Hamlet diz pouco antes de morrer no Ato V, Cena II, e que dá um ensaio à parte.

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