o que se pergunta aos escritores
d.C. 2009/1
Carlos Irineu da Costa

as pessoas me perguntam como faço para escrever. a resposta fácil, a que me vem primeiro, é que não faço nada – os dedos me caem sobre o teclado, batem letras, isso compõe um texto e é assim que toda gente escreve, suponho, exceto os que ainda usam caneta ou qualquer dispositivo não eletrônico (sinto falta do ta-ta-ta de uma IBM Selectric, mas é enorme e não acho que eu ainda tenha tendões e nervos capazes de agüentar uma; pena).

mas se insistem na pergunta, se não querem saber “como” pois entendem que é um “porquê”, então  mais confusa se torna minha resposta.

há algo básico sobre os escritores que essas gentes que fazem grandes perguntas genéricas ignoram: assim como os vermes de Machado – os de “Memórias Póstumas”, algum trecho, nunca fui bom em citações, o leitor que os procure – … assim como os vermes de Machado apenas roem, e não sabem o que roem, escritores apenas escrevem, e no mais das vezes descobrem o que fizeram pouco antes de terminar. o que já é muito, escrever é bem mais complicado do que deixar bater os dedos ao teclado. há que se compor uma trama, há que se ver os detalhes daquilo que se narra, há que se escolher cada uma das palavras como se, neste escolha, estivesse quase implícita a Criação do Universo. que de fato está, pois os Universos que construímos – com ou sem maiúscula, não me importa, os revisores de toda forma irão mexer no final – são essas constelações de letras, são universos de borrões no papel (talvez na tela, mas inevitavelmente nossos universos acabam impressos) e tudo que temos para mante-los, faze-los, saber como funcionam lá dentro são essas palavras.

ainda assim pensamos o mínimo possível a respeito porque.

porque não somos teóricos, somos escritores.
porque em parte a boa escrita é tão natural quanto respirar, e tente perguntar “por que respiro?”, a ver se consegues uma resposta: adianto-lhe que acho difícil, mas a sensação de falta de ar é o que nos vem quando não podemos escrever por muito tempo.
porque em parte é tão complicado quanto se perguntar “como faço para andar?”, e tente observar todos os movimentos e olhares e as maquinações internas que se dão no cérebro e no corpo (não que o cérebro não seja corpo, mas me parece uma parte especial do corpo, lá onde se originam os universos dos escritores). tenho como certo que não lhe será possível dar um passo a mais, preso na perplexidade frente a um movimento tão simples, tão certo, mas que parece impossível se for pensado, é percebido como algo estranho que se decompõe em tantas coisas dentro de nós que -  será teu próximo pensamento - o melhor é prosseguir andando, não pensar. note que são de muito trabalho e de trabalho intenso em repetidos ensaios - e quedas - os primeiros anos que levamos para dominar os mecanismos básicos dessa máquina complexa – corpo –, mas a partir daí fazemos coisas incríveis como andar, respirar, comer.

há mesmo os que sabem dar cambalhotas no ar ou os que fazem performances atléticas mas acho que são estes os que escrevem com o corpo. sou apenas um usuário.

sou escritor de outro tipo, um que não sabe dar três giros em pirueta duplo mortal e jamais fascinaria alguém se estivessem a me filmar digitando. fato: difícil conceber algo mais obscenamente desinteressante do que o ofício de escritor enquanto a escrita se faz, parados que ficamos em uma cadeira (alguns fumam, outros bebem, outros como eu levantam-se constantemente a indagar na cozinha à geladeira se ali se esconde algo de bom que nos tenha escapado na última escapada à cozinha; daí a ter uma barriga proeminente é mera distração) mexendo – com velocidade variada, de acordo com  pensamentos que nos ocorrem em maior ou menor grau – as pontas dos dedos e olhando com uma intensidade que somente nós possuímos para a tela – e quase nenhuma outra gente sabe o que estamos a perscrutar, o que vemos para além do branco salpicado de preto (antes verde escuro salpicado de verde mais claro, nem ocorrerá aos jovens do que estou a falar agora) ou mesmo o que vemos dentro dessas letras.

como resultado de um tempo inconcebível daquilo que decerto não pareceria “trabalho” aos olhos de um marceneiro – qualquer artesão tem muito mais graça, e seu ofício maior interesse, do que nosso artesanato de palavras, nós que pretensiosamente dizemos “Arte”, a grande arte – sai lá pelas tantas um volume, ainda nesses tempos impresso, e há um outro trabalho descomunal apenas para lidar com a materialização física desses volumes que muito pouco importam ao escritor: quando impressa, a escrita é letra morta. já não nos diz respeito, é para os leitores, pertence a outros olhos.

não saberia explicar, então, qual fascínio nesse fazer sem fazer, no ócio intenso e preocupado; não saberia dizer porque digo o que escrevo, nem me foi dado saber quando ou por que escolho um tema específico ou que caminhos o pensamento percorre sozinho até sentir-se pronto para fluir abaixo em direção aos dedos.

e que garantias tenho, na verdade, que não são eles, dedos, quem pensa?, e que aqui estou apenas como um gato observando pequenos insetos pretos que vão correndo na tela. se formos apenas isso, gatos curiosos sobre essa atividade mágica dos dedos que se movem de acordo com a vontade das Musas que nos ditam os textos?

garantia nenhuma, creio, a menos que de súbito me torne religioso e passe a acreditar em uma das duas metafísicas vigentes: a da ciência ou a mais antiga e mais estabelecida, a das religiões. entre as duas muda apenas onde se coloca “Deus”, não é?

mas acho que os dedos, as Musas e o sono me dizem que isso já é tema para um outro texto.

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