“O Sistema está fora do ar …”
d.C. 2010/2
Carlos Irineu da Costa in Crítica, Tecnologia & Hardware, aqui dentro, sociedade

Vamos falar sério: O Sistema é uma entidade mitológica, uma fábula contemporânea. Dizer que “O Sistema” está fora do ar tem a mesma função de dizer que você não deve entrar na floresta porque os Duendes vão raptar você; ou que deve se comportar bem porque Papai Noel anota suas boas ações e, se você for malvado, as Corporações preferem ter prejuízos e te dar uma lição moral do que cobrar os presentes nos cartões de crédito de seus pais. [1]

“O Sistema” é um troço abstrato no qual todo mundo, dos bancos à casa lotérica ao INSS, põe a culpa por coisas que, a sério, são muito mais complicadas, chatas e duras de dizer ou explicar. Coisas que, invariavelmente, são culpa de alguém, são erros de projeto, são projetos feitos sem levar em consideração os humanos que dependem (cada vez mais) dos Sistemas.

O Sistema não sai do ar. Aliás, ele nunca esteve no ar. Ele não tem vontade própria e não pode ser sujeito, é um agente da passiva. Deveríamos dizer “deixaram o sistema cair”, “o sistema foi mal programado e mal dimensionado” e “o sistema está novamente causando transtornos por falta de pessoal qualificado”.

O Sistema é um conjunto de coisas e todas elas são físicas e reais; são concebidas, fabricadas, construídas e pensadas por homens igualmente físicos e reais. Nada disso está no ar e nenhum Sistema tem vontade própria.

O que sai do ar, o que pára de funcionar, é um conjunto de hardware e software; programas, redes de transmissão de dados, mainframes, roteadores. São coisas que têm nomes, um ou mais humanos responsáveis; são resultado de um projeto e existem fisicamente. [2]

A grande diferença entre esses bois reais que têm nome, projeto e responsáveis e nosso Sistema Mitológico é que, quando algo real ‘cai’ (e quebra), é possível responsabilizar alguém, analisar um projeto e culpabilizar os responsáveis pela falha que gera prejuízos a terceiros: o banco, o órgão do governo, a agência de processamento de dados.

Mas o que alguém vai dizer sobre O Sistema? Aquele que estava fora do ar? Quem é o responsável?

Ocorre que o INSS usa um desses Sistemas Mitológicos. E, na Mitologia do INSS, se você precisa receber um auxílio por enfermidade que depende da apresentação pessoal de um laudo [3], mesmo que você tenha perdido o seu dia de trabalho ou sofrido fisicamente para ir ao posto e tentar receber aquilo que é responsabilidade e dever do Governo te retornar, com tudo isso, se você chegar no posto do INSS e O Sistema estiver ‘fora do ar’, bem, você terá que voltar outro dia. Que azar, não?

Para o INSS, me parece conveniente que O Sistema esteja ‘fora do ar’: naquele dia, o INSS não terá que reembolsar nada. E não há culpa, não há o que reclamar: os funcionários estão lá, o posto do INSS está aberto, foi só O Sistema…. Está tudo certo, concidadãos – agora voltem para casa.

Com quem vamos reclamar que O Sistema está fora do ar?

Minha pergunta responde a si mesma: precisamos que haja alguém responsabilizável por manter sistemas críticos, como o do INSS, ‘no ar’ e dentro de faixas de tolerância mínimas. Precisamos de agências reguladoras, precisamos que seja possível multar e punir e processar qualquer um que alegue que alguém sofrerá porque O Sistema está ‘fora do ar’. 

Quantas pessoas morrem, por ano, porque O Sistema da sala de cirurgias saiu do ar? Quantos aviões caem porque O Sistema saiu do ar com o avião no ar? Quanto tempo sua operadora de celular pode deixar uma região sem sinal antes que a ANATEL a multe violentamente?

Em todos estes casos, e muitos outros, quem projeta e opera os sistemas sabe que a margem de erro é muito pequena, ou que não há tolerância alguma. Há metodologias e critérios e normas e certificações para garantir que todas estas coisas funcionem.

Por que estamos sendo omissos, então, ao não exigir o mesmo de todos os sistemas dos quais dependemos e que podem nos causar prejuízos?

 

[1] Acho que, originalmente, “as corporações” era algo como o Pólo Norte e Papai Noel, de vermelho, era um comuna safado que tentava subverter o Capitalismo Transnacional dando, de graça, bens materiais de consumo que a indústria teria vendido, se não fosse por ele. Curiosamente, como empregador, ele seguia ao máximo a lógica do Capitalismo, e não do Comunismo, porque empregava mão de obra escrava que, pelos poucos relatórios que temos, trabalhavam sem qualquer amparo legal, em horários desumanos e não eram sindicalizados. A pergunta fica para um artigo futuro, portanto: “Papai Noel: Camarada Solidário ou Patrão Cruel?”.

[2] Insisto mais uma vez no grande engano que é ficar falando no “virtual”. Eletrônico, certamente; digital, com certeza; ‘no ar’ como forma cotidiana de dizer ‘na rede’, tudo bem. Virtual? Não. Até porque é bem simples pensar que tudo aquilo que acontece no suposto “mundo virtual” têm consequências reais. O Virtual é outra mitologia estranha que faz com que as pessoas não vejam o que está na frente delas.

[3] É isso mesmo: o doente tem que comparecer levando o laudo do médico dizendo que ele, doente, não pode trabalhar ou talvez sair na rua para levar laudos; acho criminoso, mas parece que é uma deficiência d’O Sistema que cria Sistemas.

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