Violência & Literatura ao longo da História
d.C. 2010/2
Carlos Irineu da Costa in Cinema & Vídeo, Escritos, autores, cinema, ensaio, escritos, literatura, livros, lá fora

Prometi a meu bom amigo Luis, do Janela Lateral, que transformaria em ensaio (que ele vai enviar e eu vou publicar aqui, na minha “versão expandida”) um comentário que fiz esta semana sobre uma newsletter dele em que o assunto era a visão de Huxley e Orwell sobre distopias. 

Este é meu primeiro prólogo ao assunto – uma reescrita de um texto original de uma grande pensadora que jamais desejou se publicar (nunca entendi por que, mas respeito o desejo dela). Entretanto, a essas alturas, há muito em mails.

Leiam em itálico. O texto não é totalmente meu, mas retrabalhei muitas coisas (e a teia de teias com filmes é muito a minha cara, minha escrita).

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O que pensei é que através da história o grande meio de se falar da violência sempre foi a literatura.

Na Teogonia, de Hesíodo, já há todo um discurso sobre o poder - quem detém o poder e como você pode ser castigado se não for muito esperto. Lutas familiares em torno da divisão das terras já existem em Os Trabalhos e os Dias, também de Hesíodo.

Homero nos fala do estabelecimento do poder no mundo helênico - os senhores das guerras, as alianças entre as Nações-Estados. Tróia é uma cidade mítica que a maior parte dos estudiosos acreditam nunca ter existido historicamente – metáfora, símbolo, meme.

As tragédias gregas da fase clássica nos relatam as brigas entre pais, filhos, soberanos, vassalos, estado, cidadãos. Discute-se o direito da Pólis e o lugar do sagrado  em Antígona; Édipo mata o pai, toma seu trono e depois arranca seus olhos para não ver o que tinha feito: usurpou o trono do pai e não ouviu o oráculo. O incesto, talvez ponto central do texto, hoje, não parece ser o que mais horrorizava os gregos.

A Bíblia do Antigo Testamento é de enorme violência. Não poderia ser filmada, hoje, e seria muito mal recebida como obra ficcional por seu caráter preconceituoso e pela crueldade. Só há um Deus verdadeiro em nome do qual as mais diversas atrocidades são cometidas, mas tudo bem, Deus justifica tudo, há um Propósito. Não saímos muito disso em 2000 anos – em vez de pedras, jogamos Tomahawks, contudo.

Na Idade Média, os trovadores encontravam meios de burlar a censura para falar do amor e do erotismo, ainda que sujeitos a determinados códigos. Muitas coisas que não podiam ser ditas eram transmitidas em forma de código nas artes – música, poesia, pinturas, esculturas. Leonardo escreveu muita coisa espelhando a própria escrita para não ser descoberto e Galileu usou retórica para se livrar da Santa Inquisição.

Um pouco antes, na fundação do imaginário anglo-saxão (e normando, e bretão…), as lendas arturianas nos falam de justiça, da busca pela Verdade, do amor, da prepotência. Na Távola Redonda, Artur – o Rei - e seus companheiros se reuniam como iguais em torno de uma mesa, numa volta à Ágora ateniense, em que uma elite de guerreiros tinha o direito a voto.

Temo pelo dia em que refilmarem o Rei Arthur com o Russel Crowe no papel de Arthur e prefiro ficar com a figura perturbada do Arthur de Excalibur, dirigido pelo John Boorman em 1981, mágico em sua releitura de Arthur; Merlin e Morgana são dois personagens formidáveis, maiores que o filme. [1]

Passamos para Cervantes e o romance de cavalaria, combatendo moinhos de vento, Quixote como o paradigma da utopia, mas Quixote era louco e, quando recobra a lucidez, desiste das lutas (?).

Shakespeare com suas tragédias bárbaras retoma o longo thread da violência, do estado, do poder, do sexo, dos ciúmes, dos conflitos e paixões e da amizade e traição e usura… Há algo que Shakespeare não tenha mencionado?

Não sei qual das tragédias é mais terrível. Ricardo III, por ter nascido feio e coxo, se acha no direito de fazer tudo o que pensa para atingir o poder que não se quer ameaçado; Macbeth, em que o casal se junta para dizimar todos que servissem de empecilho para a tomada do poder, em que os crimes eram tantos que Lady Macbeth não podia lavar o sangue de suas mãos. Titus Andronicus, um filme de terror em que os inimigos servem de um lauto banquete e a crueldade nua do texto serve para marcar melhor a sordidez e a violência da época. Há mais, porém não haveria espaço.

Camões escreve seu poema épico, conquistas e conquistados, a arrogância de Inez, que só pode ser rainha depois de morta.

Teria que mencionar De Sade, o Marquês que foi mais longe do que qualquer coisa que possamos pensar, hoje, e possamos admitir como possibilidade de escrita, hoje, mas De Sade será um capítulo à parte em minha tese.

Os séculos vão se passando e a violência pode estar mais encoberta ou pode ter se individualizado em serial killers ou se banalizado em thrillers nos quais “tudo explode”, então já não importa mais. Ainda assim, há uma veia aberta que permanece – corre sangue, true blood.

Nem sempre os escritores são queimados, mas queima-se a sua alma, os seus livros. Livros e bibliotecas sempre foram queimados – Alexandria, ao que parece, por um engano, omissão ou detalhe técnico -, mas há sempre um exemplar que se salva.

Os livros, a palavra, as narrativas continuam a ser ainda a maior forma de SubVersão.

Glória / CDC 2008 ~ 2010 [em andamento, suponho]

 

[1] Nada a ver com o artigo, mas o casting de Boorman é um daqueles que deixam um cinéfilo meio aturdido: não vou listar todo mundo (o IMDB lista), mas eu lembro que Liam Neeson estava lá; diabos, Helen “The Queen” Mirren estava lá, belíssima; e, mais fascinante para os trekkers, Patrick “Captain Picard” Stewart faz o papel de Leondegrance.

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