fragmentos de um espelho (esboço)

a imagem era um brancopreto granulado vinda de algum lugar perdido no meu Repositório Pessoal. ela estava em um quarto, olhando para baixo, para longe. havia algo de melancólico, havia beleza, acho que há melancolia na beleza. o reverso também vale.
foi a única imagem que me restou dela, muito tempo depois, quando nem conseguia mais lembrar o que senti por ela - nos conhecemos um dia? ela é (ou foi) real? não me lembrava sequer se eu estava naquela cena, naquele quarto, naquele tempo. não podia ver seus olhos, fechados e distantes dentro dela. o quarto, para mim, é uma imagem espelhada: os olhos fechados, de frente, e ao mesmo tempo um outro eu olhando por trás dela para objetos que não estão na foto: uma cama, um abajur antigo, dois quadros (ela pintava? não me lembro de ter comprado quadros), algo que parece um daqueles lustres de cristal, como havia na Europa Oriental antes da Queda.
talvez seja uma foto de produção. um filme, no início da minha carreira, ela seria a atriz. não tenho registro de ter produzido nada como aquilo mas, se foi mesmo antes da Queda, não haveria registros.
dentro de mim, eu não lembro.
se eu pensar na cor dos olhos, por exemplo, não sei em que penso: pretos, castanhos, azuis, verdecinza? todas as cores são imaginárias quando se olha para uma foto brancopreto e, se eu mandar colorizar digitalmente, será uma cor irreal, algo que meus sistemas terão interpolado usando um vasto banco de dados, medianas, padrões de reflexão - tudo o que a técnica pode me dar, mas nada além disso. novamente: o que isso teria de real, ou em que seria melhor do que inventar uma cor, eu mesmo, uma que me pareça bela naquele rosto?
de toda forma, com ou sem cores, aquilo que está fechado dentro dos olhos dela, o que ela pensava, está para sempre perdido.
só me resta a imagem e uma imagem nunca "diz" uma pessoa: nada diz uma pessoa por completo.
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