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Entries in Borges (3)

Sexta-feira
mai202011

Jardins : Loteria : Biblioteca : Babel + Babilônia = A Forma

você sabe que, no fundo, o site todo é um livro.
você pensou nisso às 4h da manhã, acordando, incomodado, por coisas que nem pôde reparar.
você ignora os erros de português ou de digitação porque agora digita tão rápido que as idéias são só um borrão. musical, como notas de um saxofone tocado muito rápido. como uma passagem de Brahms.
continua firme enquanto o espaço mental de criação se desdobra infinitamente.
se a crítica maior é que Borges  se recusou a reconhecer A Forma, a deixar o texto se abrir e se desdobrar nos caminhos que se bifurcam (o Jardim é tão grande quanto a Biblioteca de Babel e o que determina os percursos é a Loteria de Babilônia, você escreveu num ensaio que não publicou ainda; mas é tão óbvio) …. então, às 4h da manhã, o que você nota é que precisa deixar o site e o texto e o livro que vem do texto que é o site, tudo isso, se abrir em caminhos e enveredar por onde achar que é razoável, ou insano.
você disse ontem que sua próxima empresa se chamaria _______. não, você não pode dizer o nome antes que seja criado, seria o mesmo que perdê-lo.
você apenas digita mais um texto, como quem planta outro arbusto e cria mais uma bifurcação no Jardim, como quem faz outra aposta na Loteria, como quem muda um trecho de um dos livros da Biblioteca.
sabe, Borges não escreveu - talvez não tenha notado - mas os livros da Biblioteca estão constantemente sendo reescritos, sem que ninguém veja.
é o que quebra a estrutura do conto - é o limite, de onde ele não passou.
isso continua.
Quarta-feira
ago252010

A falácia da Googlewikiobjetividade

Lembrou-se de que os sonhos dos homens pertencem a Deus e que Maimónides escreveu que são divinas as palavras de um sonho, quando são distintas e claras e não se pode ver quem as disse.

Borges, Ficções [5]

 

O que me importa, nessa citação de Borges, além de ser incrivelmente bela (e o resto do conto potencialmente irrelevante face à potência da escrita de Borges nestes momentos de clarividência sobre o Universo, o Imaginário, o Sonho e a Escrita), é esta passagem extrema: são divinas as palavras de um sonho, quando […] não se pode ver quem as disse.

Meu ponto sendo que a Web, ou o que vou começar a chamar de “pensamento googlewikipédico” – um ultrarreferencialismo hiperabrangente -, assim como o conceito de referencialidade na escrita acadêmica em Humanas [7] e, no final, todos os sistemas de referência a que a Escrita por vezes se vê submissa são uma redução dessa divindade, uma tentativa de aniquilação do sonho, do imaginário e do ficcional. Para escrever, para transcender a escrita imediata dos autômatos da googlewikiobjetividade, é preciso praticar esse “não ver quem disse as palavras de um sonho”.

Assim como o Sonho precisa da escuridão (temporária) da Noite, o Imaginário precisa da escuridão (temporária) do Real.

Voltando ao início, porque nem comecei.

O maior problema de terminar um texto é que, quando eu começo, já tenho tantas idéias e ‘caminhos que se bifurcam’ empilhados na cabeça que é quase necessário que eu não termine. Tento resolver o que Borges nunca resolveu e experimento uma escrita necessariamente incompleta (não “aberta”, embora também o seja, mas francamente incompleta) e “em grafo”, para não voltar à coisa batida e nunca resolvida do “hipertexto” [1][3].

O que decidi, agora, foi que este texto nem tentaria terminar, mas provavelmente, nos próximos dias, vou repartir este texto em fragmentos que se bifurquem e espalhá-lo pelo site. Enquanto isso, deixo um pequeno mosaico de coisas para o leitor que quiser passear comigo.

CDC

[1] Tudo é “hipertexto” [3][8], hoje, porque a Web existe e a Web é uma representação do mundo mas é também o mundo-em-si. (De onde o projeto do meu próximo livro.) Achar que existe um “cyberespaço” que não é mais o mesmo que o aqui-agora (suponho que seja como definimos “espaço”) é uma ilusão um pouco perigosa [2].

[2] De onde eu insistir tanto que podemos continuar falando de “ciberespaço” ou de “internet banking” (vulgo “banco na internet”) e que certamente on-line faz sentido e é oposto a off-line. Mas quase nada é “virtual” e continuo não entendendo por que insistimos nesse termo-conceito. [2b]

[2b] A notar que “virtual” se opõe a “real” e a “concreto”. Não sei bem o que faço com o Imaginário, ele parece ter um estatuto a parte ou, pelo contrário, ser algo problematico dentro dos topoi criados por virtual / real / concreto. Preciso retomar isso. [6]

[3] O lugar mais patético para ‘vivenciar’ isso é a Wikipedia. Depois que se perderam completamente (IMHO) do que pudesse ser um projeto interessante de, digamos, um neo-Iluminismo que viesse comentar o mundo, para se tornar uma tentativa tacanha e necessariamente impossivel e falha de mapear o mundo e todas as palavras e conceitos e coisas do mundo [4], bom, um artigo sobre uma série de TV tinha 95 referências [9]

[4] Vide Borges, naquele conto que não lembro mais qual era nem onde está sobre os Cartógrafos de ___, onde havia um mapa que era tão exato que precisava (e pretendia) ser maior e mais amplo do que a realidade em si. A Wikipedia é a mesma coisa, exceto que alguém por lá se esqueceu que o conto era ficcional, potencialmente uma crítica irônica e certamente apontava para uma impossibilidade e um paradoxo. Alguém mande mail para a “Chefia” da Wikipedia, por favor, e peça para que eles retornem a essa coisa desagradável que é o deserto do Real.

[5] Editorial Teorema / Bibliotex, provavelmente: 2000; provavelmente: Tradução de José Colaço Barreiros.

[6] Leitores atentos terão notado que eu intencionalmente não estou falando do livro “O que é o Virtual?” de Pierre Lévy, trad.de Paulo Neves, do qual fiz a revisão técnica e, sei lá, talvez um pouco de revisão da tradução.

[7] A idéia de que as “Artes e Ciências Liberais”, como dizem os gringos, sejam “Ciências Humanas” é ainda pior do que ter esse “Ciências” junto de “Artes”. Que isso venha de uma antiga divisão dos tempos da fundação da Sorbonne, sei lá. Que isso tenha sido parte do ideário positivista dos sécs. 19 e 20, que seja. Que tenha sobrevivido ao final do século 20, deixado de notar o Legado de Brecht, passado impune pelo Surrealismo e pelo Modernismo e gerado os horores que gerou, em crítica literária, crítica, pensamento e Arte, como um todo … eu lamento.

[8] Quando fizemos a revista “34 Letras”, era comum acordo tácito e jamais explicitado, entre nós, projetistas, criadores, editores – “makers” – que a inexistência de qualquer vinculação (a nada) do nome da revista era nossa forma clara de falar sobre o que, na época, não podíamos, não queríamos ou não sabíamos dizer: o pensamento pós-moderno, e como construir dentro dele. O último número da revista, logo antes de ser detonada pelo Plano Collor, era sobre “O Lixo”, se bem me lembro. Mitológico, esse arquivo um dia existiu nos Macs que a revista então usava e, conta a lenda (isso e algumas conversas já antigas com a Bia Bracher), se perdeu em algum momento de não-backup. “O Lixo” tentava falar sobre, nas palavras dos Titãs (que não têm nem tinham nada a ver com isso) “o que não é o que não pode ser o que não é”. Tenho a impressão, por vezes, olhando para trás e tecendo conjecturas amplas, que foi naquela época que comecei a pensar sobre a teoria de topoi, “os lugares das coisas” [9], porque “o que não pode ser” não é um “não lugar”, como gostaria muito que fosse um certo Auger e uma tal Teoria da UltraSupraModernidade; “o que não pode ser” é muito mais antigo, remetendo tanto a Aristóteles, com seus topoi [10], mas também aos conceitos básicos do Estruturalismo, já que Saussure (vamos incluir L-Strauss aqui) fala o tempo todo sobre “o que não pode ser” quando estipula que determinadas formas não ocorrem num idioma porque não podem ocupar o mesmo lugar já ocupado por uma outra forma. É uma simplificação extrema, mas faz parte do pensamento Estruturalista. Causa-me espanto que possa haver uma teoria dos Não-Lugares [11] e que isso seja considerado qualquer coisa além de uma revisão do Estruturalismo, já fora de tempo e fora de lugar. De qualquer forma eu queria apenas fazer uma anotação sobre… é, sobre um monte de coisas que estão nesta nota.

[9] in, mas não exatamente lá, Topoi, Aristóteles. Gostaria de dizer que li o original em grego mas, na prática, li uma bela tradução em português da Casa da Moeda de Portugal.

[10] Embora Aristóteles não estivesse preocupado exatamente com isso, eu é que “remeto” a Aristóteles como se sequer fosse razoável fazê-lo, mais como imagem-sonho de algo que Aristóteles poderia ter dito do que como ‘referência’ – não há referência possível, aqui.

[11] Platão: o que é, é; o que não é, não é. Voltar, então, a discussão sobre o que seria um Ser que Não é? Eu diria o que acho que Platão disse: se um Ser Não É, então ele é da ordem do Falso. Mas, enfim, isso também é simplificar um longo debate sobre como funciona o Ser em Platão, e não acho isso nada trivial.

Terça-feira
jul272010

O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam

PS – O título da (provavelmente excelente) tradução de Davi Arrigucci Jr. para a Companhia das Letras é “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”. Nada contra, nem poderia. É só que eu costumo enveredar por caminhos mais vezes do que caminho por veredas, então ‘ouço’ o título como “caminhos que se bifurcam”. Além disso, por conta do que o texto de Borges diz e de como interpreto o jogo de sentidos, não posso pensar em ‘veredas’ - mas continuar discutindo isso seria uma bifurcação do rumo original.

Segue, a título de rápido exemplo de que preciso para continuar o que já pensei mas ainda não escrevi, o trecho central do conto de Borges. Em espanhol. Que é essencialmente o mesmo que português, basta ler sem pensar que não é!   ~;0)

Antes de exhumar esta carta, yo me había preguntado de qué manera un libro puede ser infinito. No conjeturé otro procedimiento que el de un volumen cíclico, circular. Un volumen cuya última página fuera idéntica a la primera, con posibilidad de continuar indefinidamente. Recordé también esa noche que está en el centro de las 1001 Noches, cuando la reina Shahrazad (por una mágica distracción del copista) se pone a referir textualmente la historia de las 1001 Noches, con riesgo de llegar otra vez a la noche en que la refiere, y así hasta lo infinito. Imaginé también una obra platónica, hereditaria, trasmitida de padre a hijo, en la que cada nuevo individuo agregara un capítulo o corrigiera con piadoso cuidado la página de los mayores. Esas conjeturas me distrajeron; pero ninguna parecía corresponder, siquiera de un modo remoto, a los contradictorios capítulos de Ts’ui Pên. En esa perplejidad, me remitieron de Oxford el manuscrito que usted ha examinado. Me detuve, como es natural, en la frase: Dejo a los varios porvenires (no a todos) mi jardín de senderos que se bifurcan. Casi en el acto comprendí; el jardín de senderos que se bifurcan era la novela caótica; la frase varios porvenires (no a todos) me sugirió la imagen de la bifurcación en el tiempo, no en el espacio. La relectura general de la obra confirmó esa teoría. En todas las ficciones, cada vez que un hombre se enfrenta con diversas alternativas, opta por una y elimina las otras; en la del casi inextricable Ts’ui Pên, opta — simultáneamente — por todas. Crea, así, diversos porvenires, diversos tiempos, que también proliferan y se bifurcan. De ahí las contradicciones de la novela. Fang, digamos, tiene un secreto; un desconocido llama a su puerta; Fang resuelve matarlo. Naturalmente, hay varios desenlaces posibles: Fang puede matar al intruso, el intruso puede matar a Fang, ambos pueden salvarse, ambos pueden morir, etcétera. En la obra de Ts’ui Pên, todos los desenlaces ocurren; cada uno es el punto de partida de otras bifurcaciones. [1]

Retomo, altero: em todas as ficções, cada vez que um autor se depara com diferentes alternativas, opta por uma delas e elimina todas as outras. Na obra de Ts’ui Pên, contudo, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações.

Que isso tenha dado origem à Mecânica Quântica, é inquestionável. Heisenberg, von Neumann, Einstein, Böhr e meu querido Schrödinger, entre outros (tá, inclui o Hilbert, um cara legal) estavam discutindo o assunto em 1920 e poucos. Claro que prenunciaram a obra de Borges, que materializaria o conceito de quântica em sua ficção uns anos mais tarde.

Que este conto seja citado de forma muito clara no brilhante (mas quase ninguém concorda comigo e minha esposa e cancelaram) seriado estadunidense FlashForward … bom, a premissa do livro (de Robert J. Sawyer) que deu origem à série poderia muito bem ser resumida ao conto de Borges, numa versão um pouco diferente, ampliada, em outro contexto, com uma premissa muito melhor do que, chutando, 80% do que se produz em TV. Perdeu-se, já era, bifurcamos, vamos adiante.

Minha questão é outra. Minha questão é o que você faz quando acredita – e acredita como autor, não só como físico – … o que você faz quando acredita que é preciso, mesmo, dar conta de todas as possibilidades a cada vez que, num texto, há uma bifurcação? Você elimina as outras, como é costume fazer para tornar uma história “coerente”? Você escreve um livro circular? Você escreve um romance no qual o último capítulo é igual ao primeiro, porém diferente, e tudo que vem no meio pode ser lido como meta-referências ao próprio livro que o leitor lê? Você inventa uma escrita hipertextual em 1940?

Bem, talvez você não consiga escrever, porque o Infinito, assim como as idéias infinitamente interessantes, são inerentemente paralisantes para um autor. Então, frente ao conceito da Biblioteca de Babel, à idéia das ruínas circulares – uma metáfora linda sobre o ato de escrever, mas é um conto chato, medíocre - talvez você fique a tal ponto preso nas múltiplas possibilidades que o tecido da escrita não possa se adensar.

Naturalmente, há vários desfechos possíveis. E um deles é retomar o tema sucessivamente em vários contos: Pierre Menard, ‘Tlön, Uqbarm Orbis Tertius’, As Ruínas Circulares, A Biblioteca de Babel …. todos ‘dentro’ do Jardim de Borges. Certamente a idéia contida na “coleção de idéias” do Jardim de Caminhos que se Bifurcam é uma das coisas mais formidáveis produzidas em literatura no século 20. A questão é que, embora isso faça de Borges um gênio, um homem com idéias muito adiante de seu tempo, muito peculiarmente isso não faz dele um bom escritor – pelo contrário, me parece que é justamente isso que impede que a escrita de Borges deixe seu eterno devir [2] para que suas idéias se concretizem, não em um Jardim, mas em uma escrita.

É hora de bifurcar, também, até porque acho que é preciso falar de Fernando Pessoa quando se fala de Borges e de ficções da escrita.

File / Save / Close. I’m out there.

[1] Jorge Luis Borges, Ficciones, “El jardin de senderos que se bifurcan”, 1941.

[2] “Devir”, aqui, como o campo de potenciais quânticos que podem se realizar, mas talvez nunca se realizem de fato; e ficção não é uma equação matemática a ser lida como uma função de onda probabilística, o que seria bem interessante, contudo.