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Entries in crítica (3)

Quarta-feira
ago252010

A falácia da Googlewikiobjetividade

Lembrou-se de que os sonhos dos homens pertencem a Deus e que Maimónides escreveu que são divinas as palavras de um sonho, quando são distintas e claras e não se pode ver quem as disse.

Borges, Ficções [5]

 

O que me importa, nessa citação de Borges, além de ser incrivelmente bela (e o resto do conto potencialmente irrelevante face à potência da escrita de Borges nestes momentos de clarividência sobre o Universo, o Imaginário, o Sonho e a Escrita), é esta passagem extrema: são divinas as palavras de um sonho, quando […] não se pode ver quem as disse.

Meu ponto sendo que a Web, ou o que vou começar a chamar de “pensamento googlewikipédico” – um ultrarreferencialismo hiperabrangente -, assim como o conceito de referencialidade na escrita acadêmica em Humanas [7] e, no final, todos os sistemas de referência a que a Escrita por vezes se vê submissa são uma redução dessa divindade, uma tentativa de aniquilação do sonho, do imaginário e do ficcional. Para escrever, para transcender a escrita imediata dos autômatos da googlewikiobjetividade, é preciso praticar esse “não ver quem disse as palavras de um sonho”.

Assim como o Sonho precisa da escuridão (temporária) da Noite, o Imaginário precisa da escuridão (temporária) do Real.

Voltando ao início, porque nem comecei.

O maior problema de terminar um texto é que, quando eu começo, já tenho tantas idéias e ‘caminhos que se bifurcam’ empilhados na cabeça que é quase necessário que eu não termine. Tento resolver o que Borges nunca resolveu e experimento uma escrita necessariamente incompleta (não “aberta”, embora também o seja, mas francamente incompleta) e “em grafo”, para não voltar à coisa batida e nunca resolvida do “hipertexto” [1][3].

O que decidi, agora, foi que este texto nem tentaria terminar, mas provavelmente, nos próximos dias, vou repartir este texto em fragmentos que se bifurquem e espalhá-lo pelo site. Enquanto isso, deixo um pequeno mosaico de coisas para o leitor que quiser passear comigo.

CDC

[1] Tudo é “hipertexto” [3][8], hoje, porque a Web existe e a Web é uma representação do mundo mas é também o mundo-em-si. (De onde o projeto do meu próximo livro.) Achar que existe um “cyberespaço” que não é mais o mesmo que o aqui-agora (suponho que seja como definimos “espaço”) é uma ilusão um pouco perigosa [2].

[2] De onde eu insistir tanto que podemos continuar falando de “ciberespaço” ou de “internet banking” (vulgo “banco na internet”) e que certamente on-line faz sentido e é oposto a off-line. Mas quase nada é “virtual” e continuo não entendendo por que insistimos nesse termo-conceito. [2b]

[2b] A notar que “virtual” se opõe a “real” e a “concreto”. Não sei bem o que faço com o Imaginário, ele parece ter um estatuto a parte ou, pelo contrário, ser algo problematico dentro dos topoi criados por virtual / real / concreto. Preciso retomar isso. [6]

[3] O lugar mais patético para ‘vivenciar’ isso é a Wikipedia. Depois que se perderam completamente (IMHO) do que pudesse ser um projeto interessante de, digamos, um neo-Iluminismo que viesse comentar o mundo, para se tornar uma tentativa tacanha e necessariamente impossivel e falha de mapear o mundo e todas as palavras e conceitos e coisas do mundo [4], bom, um artigo sobre uma série de TV tinha 95 referências [9]

[4] Vide Borges, naquele conto que não lembro mais qual era nem onde está sobre os Cartógrafos de ___, onde havia um mapa que era tão exato que precisava (e pretendia) ser maior e mais amplo do que a realidade em si. A Wikipedia é a mesma coisa, exceto que alguém por lá se esqueceu que o conto era ficcional, potencialmente uma crítica irônica e certamente apontava para uma impossibilidade e um paradoxo. Alguém mande mail para a “Chefia” da Wikipedia, por favor, e peça para que eles retornem a essa coisa desagradável que é o deserto do Real.

[5] Editorial Teorema / Bibliotex, provavelmente: 2000; provavelmente: Tradução de José Colaço Barreiros.

[6] Leitores atentos terão notado que eu intencionalmente não estou falando do livro “O que é o Virtual?” de Pierre Lévy, trad.de Paulo Neves, do qual fiz a revisão técnica e, sei lá, talvez um pouco de revisão da tradução.

[7] A idéia de que as “Artes e Ciências Liberais”, como dizem os gringos, sejam “Ciências Humanas” é ainda pior do que ter esse “Ciências” junto de “Artes”. Que isso venha de uma antiga divisão dos tempos da fundação da Sorbonne, sei lá. Que isso tenha sido parte do ideário positivista dos sécs. 19 e 20, que seja. Que tenha sobrevivido ao final do século 20, deixado de notar o Legado de Brecht, passado impune pelo Surrealismo e pelo Modernismo e gerado os horores que gerou, em crítica literária, crítica, pensamento e Arte, como um todo … eu lamento.

[8] Quando fizemos a revista “34 Letras”, era comum acordo tácito e jamais explicitado, entre nós, projetistas, criadores, editores – “makers” – que a inexistência de qualquer vinculação (a nada) do nome da revista era nossa forma clara de falar sobre o que, na época, não podíamos, não queríamos ou não sabíamos dizer: o pensamento pós-moderno, e como construir dentro dele. O último número da revista, logo antes de ser detonada pelo Plano Collor, era sobre “O Lixo”, se bem me lembro. Mitológico, esse arquivo um dia existiu nos Macs que a revista então usava e, conta a lenda (isso e algumas conversas já antigas com a Bia Bracher), se perdeu em algum momento de não-backup. “O Lixo” tentava falar sobre, nas palavras dos Titãs (que não têm nem tinham nada a ver com isso) “o que não é o que não pode ser o que não é”. Tenho a impressão, por vezes, olhando para trás e tecendo conjecturas amplas, que foi naquela época que comecei a pensar sobre a teoria de topoi, “os lugares das coisas” [9], porque “o que não pode ser” não é um “não lugar”, como gostaria muito que fosse um certo Auger e uma tal Teoria da UltraSupraModernidade; “o que não pode ser” é muito mais antigo, remetendo tanto a Aristóteles, com seus topoi [10], mas também aos conceitos básicos do Estruturalismo, já que Saussure (vamos incluir L-Strauss aqui) fala o tempo todo sobre “o que não pode ser” quando estipula que determinadas formas não ocorrem num idioma porque não podem ocupar o mesmo lugar já ocupado por uma outra forma. É uma simplificação extrema, mas faz parte do pensamento Estruturalista. Causa-me espanto que possa haver uma teoria dos Não-Lugares [11] e que isso seja considerado qualquer coisa além de uma revisão do Estruturalismo, já fora de tempo e fora de lugar. De qualquer forma eu queria apenas fazer uma anotação sobre… é, sobre um monte de coisas que estão nesta nota.

[9] in, mas não exatamente lá, Topoi, Aristóteles. Gostaria de dizer que li o original em grego mas, na prática, li uma bela tradução em português da Casa da Moeda de Portugal.

[10] Embora Aristóteles não estivesse preocupado exatamente com isso, eu é que “remeto” a Aristóteles como se sequer fosse razoável fazê-lo, mais como imagem-sonho de algo que Aristóteles poderia ter dito do que como ‘referência’ – não há referência possível, aqui.

[11] Platão: o que é, é; o que não é, não é. Voltar, então, a discussão sobre o que seria um Ser que Não é? Eu diria o que acho que Platão disse: se um Ser Não É, então ele é da ordem do Falso. Mas, enfim, isso também é simplificar um longo debate sobre como funciona o Ser em Platão, e não acho isso nada trivial.

Quinta-feira
mar252010

"Guerra ao Terror" em 6 linhas

(nova tentativa de formato)

Fui ver Guerra ao Terror. Violência do início ao fim e, para os que falam sobre narrativa, diria que não há o que falar.

Como tantos filmes de Hollywood, a narrativa segue o modelo videogame: HALO, FEAR ou qualquer jogo FPS (“jogo de atirar em 1a pessoa”). Especificamente, só duas coisas: correrias + explosão / cut scene (a “explicação” da coisa) e volta à correria. Repetir até encher o saco.

Se deram Oscar ao filme, ou foi medo de transformar o Cameron em deus ou foi porque os americanos não sabem mais o que fazer com essa guerra - cinco anos disso, acho.

Pena.

Terça-feira
mar092010

Sobre o Trabalho do Crítico: a bela citação do Ratatouille

Um amigo de web de longa data acaba de mandar um twiiit dizendo que eu sou “do contra”. Ele leu, no artigo super-pró-Bing que escrevi hoje, mais as críticas ao Google do que o propósito do artigo em si, que era falar coisas boas sobre as fotos do Bing.com.

Tudo bem, concordo com o que Derrida disse sobre o ‘parricídio do texto’ [*]: quando colocamos um texto para fora, quando publicamos, ele se torna “ele” - não é “nós”, não é mais “o que eu, autor, quero” e, neste sentido, nós, autores, não ‘sabemos’ mais sobre um texto do que os leitores.

Fiquei pensando, mais uma vez, sobre a enorme facilidade que há em escrever na web – ou nos jornais – criticando absolutamente qualquer coisa. Criticar é encadear adjetivos e imagens de forma criativa e, como muitas vezes o resultado é engraçado – e como o sucesso de poucos desperta a inveja de muitos –, críticas são mais fáceis do que elogios.

Lembrei do monólogo belíssimo, no final de “Ratatouille” (vamos lá: um filme emocionante, lírico, filosófico, libertário; um belo roteiro, excelente animação, brilhante realização da Pixar, ótimas idéias … é tudo verdade, mas não é um “bom texto” se eu disser assim!, tem que ser muito mais do que isso para que eu possa dizer algo sério e realmente bom sobre Ratatouille, em grande parte porque o filme continuará sendo muito melhor do que minha escrita).

O monólogo é sobre a crítica. Anton Ego, “crítico de gastronomia”, com esse nome tão adequado, diz algo que poderia ter saído de qualquer ensaio de um literato, um filósofo, um pensador. Veio em formato mais acessível através deste filme concebido por vários pensadores e eu os admiro por isso:

Em muitos sentidos, o trabalho do crítico é fácil. Nos arriscamos muito pouco, mas ainda assim nos colocamos numa posição acima daqueles que oferecem [apresentam] seus trabalhos e seu próprio ser para nosso julgamento. Prosperamos e crescemos com base em críticas negativas, que são divertidas de escrever e de ler. Mas a realidade amarga que nós, críticos, precisamos enfrentar é que, numa perspectiva mais ampla, qualquer porcaria medíocre possui mais significado do que uma crítica que assim a designa. Há, contudo, momentos em que um crítico precisa arriscar algo, e este momento consiste na descoberta e na defesa daquilo que é inovador. [**]

Já li muito. Estudo muito e penso ainda mais que estudo. Poucas vezes li algo mais pungente, belo, profundo e ponderado sobre a função e os limites da crítica.

Embora eu não seja, hoje, capaz de fazer uma crítica positiva apresentando soluções para tudo o que me incomoda no monopólio informacional que a Google tem se tornado mas, ainda assim, ache importante chamar a atenção das pessoas para as sucessivas operações de “tomada de poder” desta empresa, vou tentar me lembrar que tenho, como tantos outros, um lado Anton Ego que precisa sempre redescobrir a si mesmo encontrando, pela vida, “ratatouilles” que nos lembrem quem somos, o que fazemos e por que escrevemos aquilo que tentamos escrever.

Por estas palavras e infinitas imagens que hoje fazem parte do imaginário de tantas pessoas, por ousar inovar numa indústria que estava engessada, agradecimentos sinceros à Pixar e à comunidade de criadores que a formam e a mantêm, viva e orgânica.

CDC

 

[*] Para quem gosta de referências, o trecho de Derrida está no início do ensaio “La Pharmacie de Platon”. Ou, ao menos, é onde lembro que esteja!  ~;0)

[**] Traduzi eu mesmo a citação do inglês. Só depois lembrei que o filme foi dublado, mas fiquei com preguiça de procurar a citação em português. Não é, contudo, uma crítica à mesma.