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Domingo
mar112012

A Garagem Hermética de Moebius

Moebius - Garage Hermetique

A Garagem Hermética é um conceito / universo / história criado(a) por Jean Giraud, mais conhecido como Moebius. A história – ou os fragmentos do que supostamente constitui uma “história” – foi publicada em datas variadas e versões divergentes. Estão aqui, na NeoBiblioteca de Babel, em algum lugar… O histórico é complicado e, essencialmente, irrelevante: a Wikipedia US fala em 1976 a 1980, mas há uma versão de 92, continuações ou derivações em 74 e 95 e o histórico da Wikipedia FR é ainda mais complexo.

A “versão canônica” me parece ser a que foi publicada em 1979 por uma editora de nome fantástico, “Les Humanoïdes Associés” [“Humanóides Associados”], fundada por Moebius, Dionnet, Druillet e Farkas, responsável pela revista mensal “Métal Hurlant” - de onde saiu a versão americana, “Heavy Metal” - e pelo lançamento de vários quadrinhos inovadores nos anos 70 e 80.

Moebius pertence à geração de ‘artistas gráficos’ franceses que mudou as regras de jogo, abriu caminho para o que chamamos, hoje, de “graphic novel” e trouxe um novo sopro de vida para os (na época) envelhecidos heróis da Marvel e DC. Junto com outros desenhistas notórios e revolucionários, como Jodorowsky (chileno, e também autor de livros e peças de teatro, cineasta …) e Enki Bilal, Moebius criou uma nova estética para os quadrinhos, dando ênfase à narrativa.Em geral dizemos que são histórias de ficção científica (novos mundos, civilizações alienígenas, exploração do espaço, realidades alternativas), mas sua obra possui sempre um viés irônico, crítico ou francamente psicodélico.Moebius_mh6

A Garagem Hermética é definitivamente psicodélica. (Para quem quiser varrer a web em inglês, traduziram literalmente como “Airtight Garage”, perdendo o jogo de sentidos do francês e do português, porque é “hermética” não apenas por seus mundos fechados, mas porque o sentido da obra é parcialmente hermético e certamente meta-referencial.) 

O texto foi “improvisado” por Moebius: pelas entrevistas e por textos publicados depois ele deixa claro que não havia pensado em uma história, não havia um plano inicial. Ele partiu de uma premissa, um universo ficcional, e foi desenhando. Aparentemente, nem mesmo voltava para ver o que já tinha feito, então criava o que queria respeitando as regras básicas que traçou e reutilizando alguns personagens.

O resultado foi incrivelmente fértil, abriu as portas para toda uma geração de artistas que viriam depois e é um testemunho a favor da “arte pela verdade do artista”, e não pelas vendas, público, ‘likes’. Suponho que a Metal Hurlant tivesse que vender, mas, naqueles tempos, publicando quadrinhos inovadores, com qualidade, “vender” era uma questão de se organizar, cuidar da distribuição, criar uma revista com personalidade. Havia menos ruído em volta e ninguém pensava que era preciso sair publicando “A Outra Garagem” ou “Segredos da Garagem” ou “A Seita dos Herméticos”, como teriam feito hoje.

O que me fascina no conceito da Garagem Hermética é que ele abre muitas portas - tem algo na Garagem Hermética, na obra de Moebius, que se recusa a envelhecer e talvez nunca morra. Hoje, um escritor como eu, anos mais tarde e escrevendo em outro contexto, tendo lido e apreciado esses quadrinhos quando ainda era adolescente, pode pegar o conceito, deslocá-lo e começar a trabalhar com ele em outra mídia e de outra forma. 

Qual é o conceito da Garagem Hermética? Liberdade, improvisação, um imaginário que tem precedência sobre razões de mercado, hibridação de elementos.

Qual é o conceito da Garagem Hermética? Bakalites, Tar’Haï, Begnandes, Trichlo, Targrowns. As Terras Aleatórias, às quais se chega usando os transmissores de matéria. Três mundos ou três níveis, talvez criados pelo major Grubert – o major Fatal – que usou treze geradores de Efeito Grubert para criar um asteróide que cabe em seu bolso, mas, para quem está dentro dele – dentro da Garagem Hermética – a sensação é de estar em um universo aberto. Como o nosso, por exemplo.

Não é muito fácil escrever sobre a Garagem Hermética porque cada um vai encontrar coisas muito diferentes nela. Moebius trabalhou estes mundo imaginários herméticos de forma que, paradoxalmente, abram links para outros mundos imaginários, outros universos. A Garagem Hermética é aquilo que cada um encontra nela.

Os quadrinhos de Moebius, Jodorowski e Bilal fazem parte do imaginário de toda uma geração. “Matrix” não deixa de ser uma versão mais ‘tecnologizada’ da Garagem Hermética e “Duna”, o filme de Lynch, tem ligações confusas com o projeto de Moebius para o mesmo filme – todos eles eram, além disso, amigos de H.R. Giger, de onde a colaboração de Moebius na arte de “Alien”… a matriz é ampla. 

Suponho que este texto seja mais uma homenagem do que um ensaio - agora, editado em março de 2012, uma homenagem também ao Major Moebius, que se foi para outra Garagem Hermética -, e fico um pouco triste porque, ao lembrar do que estava sendo produzido naquela época, e mesmo do que foi produzido depois por Frank Miller (“Dark Knight”, “Ronin”, “Elektra” etc), Bill Sienkewicz (“Elektra”, “Stray Toasters” etc) & Cia, tenho uma sensação de perda, a impressão de que hoje, de alguma forma, há “menos”, num mundo de mais: menos imaginário e mais produção, eu creio.

Mas isso é outra das muitas histórias de nossa própria Garagem Hermética.

Quinta-feira
dez082011

o q nunca foi nem será só seu

vou me desdobrar em várias respostas. uma coisa me ocorre muito de cara: a contracapa do (meu livro de poesias) “Sala de Espelhos”:

vou escrever este livro inteiro para você, entretanto
vc sabe q será lido por todos e
q nunca foi nem será só seu; q nada do q digo aqui
é dirigido a vc, pq isto não é uma carta, pq
nada tenho para vc, é tarde demais. mas queria q soubesse,
pq agora q estou vivo tenho tanto a dizer, ainda qdo vc não venha
a me dizer as coisas q quisera ouvir. ainda qdo olhar se veja projetada
aqui não me venha pedir explicações não interprete
palavras, all that is seen
or seems is just a dream
within a dream, isto é
apenas uma sala de espelhos
num circo de vidas
ceci n’est pas une pipe
e nem mesmo representa um.

“comunicação”, vc me diz, no entanto este texto ressoa
apenas tuas próprias palavras: nada do q eu disse, nada
do q quisera dizer: nenhum som foi
possível aqui.
tenho um comentário sobre o que não está escrito nesta poesia.

a primeira parte é ao mesmo tempo uma carta de despedida para um amor perdido
(como eu teria escrito agora, se estivesse inspirado como estava naquela época)
mas é também o paradoxo que eu acho que quase todo texto tem:
eles (textos) existem, na cabeça do autor, em função de alguma coisa,
são (por vezes) dirigidos a alguém ou provêm de algum ‘fato’,
por mais que tornemos as coisas ficcionais, por mais que seja um fato imaginado;
além disso, sei que cada um terá uma leitura própria mas, paradoxalmente,
o livro publicado não ‘pertence’ mais ao autor nem a um leitor - ele é a soma de tudo
o que quiserem ler nele, e as leituras transcendem qualquer ‘desejo’ do autor quanto a dizer isso e aquilo;

daí a ideia seguinte, de que cada leitor se projeta na leitura, e os textos viram espelhos,
então, de certa forma, o “sentido original” do que eu possa escrever
fica sempre “por trás” daquilo que cada um vê ali, fica oculto pelas palavras,
embora só elas existam - palavras - e só elas ‘falem’ num livro.
mas não é a mim que cabe explicar nada, eu só disse aquilo que disse,
e eu só disse aquilo que você possa ter lido.

o que vem depois não é mais nem carta nem está falando com o leitor,
é minha tese de doutorado escrita em umas 6 estrofes,
quando eu cito ao mesmo tempo Poe e Magritte e, citando os dois,
com umas poucas palavras no meio eu falo sobre
minha teoria de que a linguagem não pode ‘representar’ nada,
que há uma distância intransponível entre a coisa-em-si (lá na Filosofia)
e nossa representação dessa coisa, e que, dream within a dream,
estamos para sempre presos nessa cadeia de remissões,
nessa (outra) sala de espelhos.

o quadro de Magritte é aquele famoso, em geral chamado mesmo de “Ceci n’est pas une pipe”,
http://en.wikipedia.org/wiki/File:MagrittePipe.jpg
mas Magritte o chamou de “A traição das imagens”, e, até onde consigo pensar,
ele olhava para a mesma coisa que eu olho (como teórico) :
o quadro é só a representação do objeto, nunca o objeto em si,
e aquela representação não contém *todo* o objeto - há muitas variações possíveis
em torno do cachimbo.

(incidentalmente, Magritte gostava muito de Poe, mas ninguém nunca vai saber
se foi por isso ou não que eu citei Poe junto a Magritte na poesia;
na verdade, uma vez que existe uma remissão, não me cabe dizer se
fiz de propósito, se só percebi depois ou se, como Magritte, eu também vejo ecos de Poe
aqui e ali)

e a ‘tese’ termina enunciando o paradoxo que em geral se coloca:
se um leitor só vai encontrar no texto aquilo que ele traz consigo,
se o texto é incapaz (no limite) de enunciar algo distinto da leitura,
então o que chamamos de “comunicação” é falso.

como no quadro de Magritte, contudo, o paradoxo da poesia (e do livro)
está no fato de que Magritte obviamente pintou um cachimbo e eu
obviamente
escrevi um livro.

(deixo vocês com a imagem do Gato de Alice, bem Schrödinger…)
Sábado
out222011

do começo

nunca teve um. começo.

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Terça-feira
out182011

coloque-se frente a uma tela em branco

Coloque-se frente a uma tela em branco. Sob seus dedos, você tem todos os textos possíveis – é uma combinatória, uma sequência de sequências finitas de teclas pressionadas. Escrever é trazer para Dentro parte do que está Fora.

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Terça-feira
ago302011

Por que não deixamos Benjamin em paz e vamos, sei lá, ‘pensar’?

A resposta é “não sei”, mas foi uma das várias coisas que eu pensei ao ler, pela manhã, a resenha do livro de uma autora nacional (nova? não sei, não a conheço ainda, mas eu desconheço tantas coisas) em um dos poucos cadernos ‘de livros’ que nos sobraram.

Vou dizer coisas polêmicas – depois cada leitor se diverte olhando para dentro, e olhando em volta, e pensando o que acha sobre tais coisas polêmicas.

A primeira é: vamos combinar que é possível ir à esquina e falar sobre um livro sem ter que citar Benjamin? Vou ser um pouco mais ousado e dizer que, das pessoas que pensam, boa parte conseguiria pensar sem citar Benjamin. Parecem contudo estar acometidas por algum vírus, pois fato é que não conseguem. Espirram Benjamin no texto. Espirram Benjamin quando me enviam mails. Benjamin disse, Benjamin postulou, segundo Benjamin.

Sagrada que seja a vossa palavra, Benjamin, não vejo ninguém falando da complexa relação de Benjamin com seu momento histórico, e pouca gente formula teses a respeito de um pensador ‘hegeliano marxista’ que era fascinado por Baudelaire e Proust, vidrado pelas vitrines capitalistas de Paris de sua época e por aquela outra forma de arte decadente, o Romantismo… Acho que Baudelaire e Proust é o mais distante possível que você pode se colocar de Hegel e Marx.

Menos gente ainda vai escavar a imensidão (literal) de “Passagens” e relacioná-la, digamos, às teses sobre a História de Benjamin, ou criar novos esboços sobre sua tentativa de mapear – no melhor estilo Borges – toda a Então Modernidade em todas as suas formas de expressão para _____. Não sei o que vem depois desse “para”, talvez nenhum de nós possa saber, porque o autor morreu e nos deixou com um fragmento de fragmentos em mãos. Creio que temos mais dúvidas sobre Benjamin do que coragem para admitir este fato. [1]

Ainda assim, por que não falamos sobre Hegel na obra de Benjamin, por que não contextualizamos historicamente suas falas naquele momento tão específico de produção do pensamento e saímos falando sobre “a Obra de Arte” e “o Narrador” como se, de 1930 para cá, essas palavras-conceito ainda tivesse algum possível sentido em comum?

Não sei. Minha hipótese médica, com profusão de dados clínicos empíricos mas profundamente contestável conceitualmente, é que o vírus de que algumas pessoas estão acometidas as impede de pensar algo novo. Ora, todos sabemos que é impossível citar Benjamin para formular a base de uma leitura crítica do próprio Benjamin, de onde é bem mais seguro não formular uma leitura crítica de Benjamin. Para tal seria preciso — valha-me deus criador — pensar algo original a respeito de sua obra.

A outra coisa (pode ser a “segunda”, porque houve uma “primeira”, mas não sei contar argumentos) é talvez devêssemos combinar que Benjamin não escreveu um texto chamado “O Narrador”. Paradoxal, porque este texto nunca escrito é frequentemente citado por todo mundo.

Mas… mas… mas…. e o texto sobre Leskov? Ah, vocês dizem, aquele texto que se chama “reflexões sobre a[s] obra[s] de Nikolai Leskov”, Leskov que, na melhor tradição acadêmica contemporânea quase ninguém se obriga a ler para ter uma visão crítica sobre a visão crítica de Benjamin, Leskov que foi apagado para se tornar “O Narrador”?

É, este texto. Quem costuma citar o tal narrador de Benjamin sem ter lido Leskov por favor faça um exame de consciência metodológica. Obrigado.

Retomo. Na tradução para o francês de Maurice de Gandillac – que estudou de fato com Benjamin, até onde me lembro do que ele me disse muitos anos atrás –, leio “Le Narrateur”, mas quase todas as traduções para o inglês falam sobre “The Storyteller” – o contador de histórias. Provavelmente porque “narrative” é uma palavra comum em inglês, mas “the narrator” soa só como alguém escrevendo errado.

Do nosso lado, “o narrador” é aquele cara que todo mundo conhece, estudamos esse cara desde o colégio – logo, desde os 8 ~ 12 anos de idade ‘sabemos’ o que é um narrador (“é quem conta a história”, diz Dona Tetéia [2]). Mas “o contador de histórias” – the storyteller –, sabemos todos, é alguém que apresenta uma peça de teatro infantil aos domingos. Não é um Tema Literário Academicamente Relevante, bolas!

Volto. Leio todos esses que citam o tal “Narrador” com uma certa angústia, porque parece a eles que seja uma Teoria Atemporal santificada por Benjamin sobre …. ?  Sei lá: o que seria uma teoria válida, aqui?, que nos fosse útil hoje, para falar sobre livros de hoje? O que seria uma teoria que desse conta do fim do romantismo e da mudança do romance, como forma principal da escrita, para algo que já não é mais o romance, mas continua sendo, óbvio, uma ‘narrativa’?

Me perco, tergiverso. Peço desculpas, mas é uma condição frequente das pessoas acometidas por este mal que é o pensamento radical [3].

Discordando ou não de traduzir o “narrador” como “o contador de estórias” (vamos concordar que nossa abordagem do texto – e as apropriações indevidas que alguns, viróticos apressados, poderiam cometer ao lê-lo – muda muito quando trocamos essa figura quase sobre-humana e a-histórica, um imperativo categórico que Kant por acaso não listou - O Narrador - pela figura muito mais humana, transitória e frágil do “contador de histórias” – Homero, Faulkner, J.Conrad… esses caras.

Fico ainda mais angustiado porque todo mundo parece esquecer que este subtítulo de Benjamin - “Reflexões sobre as obras de Nikolai Leskov” - não pretende ser “Apontamentos para novos rumos da Teoria da Literatura”. Talvez Benjamin não pretendesse que seu texto fosse o Fundamento Canônico para a Discussão da Figura do Narrador na Modernidade e em Tudo O Que Veio Depois. (Lamento, o pós-moderno é passado, temos que nos desligar disso, não vou usar o termo aqui.)

Se fôssemos rigorosos, ou se tivéssemos boa memória histórica, teríamos ainda que contextualizar um pouco quando, como e por que Benjamin estava escrevendo sobre Leskov e narrando – Benjamin foi um dos grandes Narradores do século 20 - outra das tantas ‘mortes’ disso e daquilo a que assistimos ao longo do século 20.

Era 1936 quando Benjamin resolveu falar sobre Leskov e o folclore e, talvez sem que ele soubesse, Faulkner, bem longe, estava mudando a história de como se conta histórias com Absalom! Absalom!, que talvez seja, como, ahn, ‘narrativa’, frontalmente contrário ao conceito de Benjamin sobre, hum, ‘narrativas’.

Isso tudo, contudo, é minha curta introdução para dizer que li uma ‘resenha crítica’, pela manhã, que me deixou muito irritado porque era mais uma longa citação de Benjamin do que uma tentativa honesta de falar sobre o livro em questão. E, completamente indiferente ao que o artigo tinha a me dizer sobre Benjamin em duas colunas de jornal, fiquei decepcionado porque acabei não sabendo sobre o que falava o livro que foi convenientemente apagado da tal resenha. Preciso retomar isso mais à frente.

“O Narrador”, de qualquer forma, me soa muito como “O contador de histórias na obra de Leskov” e acho que isso é algo que vale um texto, meu tempo, e uns anos de estudo.

 

[1] Não citarei ninguém aqui, neste quase-manifesto contra citações, mas, se fosse citar, citaria um ensaio iluminado de Hannah Arendt chamado “Walter Benjamin: 1892-1940”, não só uma declaração de amor a Benjamin como também uma percepção muito sensível sobre as contradições do autor.

[2] Mas conta que história?, e o que é exatamente essa coisa de “contar”?, e até que ponto quem “conta” é quem narra?, e quem aqui foi ler Genette para tentar sair dessa trama infindável onde mesmo Foucault se perdeu?

[3] Traduzindo “as in” como “tipo”, para não soar pedante, radical tipo aquele que funda a si mesmo, ‘de raiz’, não o que é radicalmente contra ou a favor de coisas.