O Globo, 18 de junho: 1 manchete, 100 milhões de ofendidos

No Rio, se você quer ler um jornal que dê conta, digamos, da vida cultural da cidade, pode escolher entre O Globo e O Globo. No Rio, fico triste pela pobreza cultural que nos reduziu a um jornal. No Rio, por incompetência, descaso, descuido, circunstâncias - não sei – perdemos o JB e jamais tivemos uma Folha ou um Estadão.
Vivemos no Fantástico Mundo d’O Globo que tem uma lógica só dele e muita retórica. Informação e seriedade? Os Classificados me parecem bem cuidados.
Não posso dizer, contudo, que o jornal não seja criativo e democrático.
A criatividade pode ser vista na manchete dos “100 milhões de brasileiros” que “vivem com dinheiro público”. Como assim “vivem com dinheiro público”? Sem fazer nada? Fantástico!, quero ir morar nesse país também, porque aqui, no Mundo Real, dou um duro enorme – e nem recebo o tal dinheiro do Governo, sou “iniciativa privada”, tudo o que sei é que pago um monte de impostos.
Quem são esses 100 milhões, “ou metade da população do país”? Talvez me falte clareza, mas, escrevendo agora, me parece que os 100 milhões são médicos; professores; pesquisadores universitários; as pessoas que trabalham duro em órgãos diversos do Governo. Talvez também a polícia, talvez bombeiros, quem sabe o exército? - não sou perito em contas públicas, lamento.
Sei que a conta envolve também os aposentados, pessoas que trabalharam a vida toda, pagando impostos e INSS, para, já velhos, verem sucessivos governos cortando seus benefícios. Ainda assim, devo crer, pela manchete, que “vivem com dinheiro público”, como se fosse algo que o Governo distribui livremente. E, sim, umas pessoas que recebem a Bolsa Família – pessoas afortunadas, claro, cuja renda é tão baixa que passariam fome se o Governo não as auxiliasse.
Embora os números bombásticos sejam “revelados” (o orçamento da União sendo, como todos sabem, um grande segredo) por um repórter, o Globo é democrático, não ‘diz’ nada e tira as conclusões que quer do estudo de um economista.
Números. Todos temos muitos números – talvez até corretos, sequer conheço o “estudo” que está sendo “revelado” para poder argumentar. Mas é estatisticamente notório que poucos conseguem dar bons significados aos números.
Pior ainda quando se trata de palavras.
Voltando. Há 48,8 milhões de brasileiros que - diz o jornal - “recebem este dinheiro” (“este dinheiro” é conhecido como salário, aposentadoria, bolsas). Como se chega a 100 milhões? Rá! Você usa a Retórica: troca o verbo “recebem” por “vivem”. Passa a levar em conta “um núcleo familiar básico de duas pessoas” e pronto: agora há 100 milhões de brasileiros [que] vivem com dinheiro público.
(E o jornal nem serve mais para embrulhar peixe… O que faço com ele?)
Acho uma façanha que os 16,2 milhões de beneficiados do INSS que recebem apenas um salário mínimo (pág.3) consigam pagar as contas de duas pessoas básicas. Nada é dito a respeito, mas vou supor que a segunda pessoa do “núcleo familiar básico” não trabalhe. Por certo alguém examinou atentamente os dados para afirmar que, no conjunto inicial de 48,8 milhões, não há casais – do contrário a multiplicação por dois perde o sentido, não é?
Ainda na primeira página. Abaixo do texto há uma foto profissional de uma obra não acabada no Rio. Nada a ver com o INSS nem com os cem milhões de brasileiros, mas parece estar lá para compondo as informações díspares: “100 milhões”, “Governo”, “obras não acabadas”: que desperdício…
É Fantástico porque, na página 3, sob o título “Dinheiro público, herança em votos?” (concluo que todos se aposentaram neste Governo, concluo que nos governos anteriores não havia servidores públicos) entrevistaram uns 4 doutores. Cada um ficou com uma frase solta e fora de contexto e, ao final, não sei o que foi dito. Sei que, nesta página 3, defino minha interpretação do que o jornal diz enquanto se ausenta de dizer: o Governo está comprando votos.
E eu achando que o aumento de 50 reais que meu tio-avó de 84 anos recebeu na aposentadoria era reposição por conta da inflação dos últimos anos. Ingênuo, eu! Agora está clara a malícia do Governo, tentando comprar os votos desse cidadão que, como muitos aposentados, NÃO VOTA MAIS!
Duas últimas coisas antes que eu deixe o jornal ser reciclado em paz.
Primeiro, se reclamam de “ganho eleitoral” por conta do Bolsa Família (ainda pág.3, ipsis literis), por que, na pág. 4, o título da matéria é “PT quer votos de beneficiados por programas sociais de Lula” – com o subtítulo perspicaz: “Estratégia é neutralizar promessa de Serra de duplicar Bolsa Família”. Devo supor que a promessa de duplicação da Bolsa feita por Serra (“segundo fontes”, diria um jornal) não visa um ganho eleitoral?
Segundo, acho que O Globo pode apoiar quem quiser. A briga entre jornais e governo ou jornais e oposição ou jornais e oposição que agora é situação, bom, isso é velho. Mas eu ficaria mais tranquilo se respeitassem a Lógica, um mínimo de coerência no pensamento, a inteligência dos leitores e, sobretudo, acho realmente peculiar que um órgão supostamente a serviço do público desrespeite tão violentamente seu público, incluído nesses 48,8 ~ 100 milhões de brasileiros. Briguem com o Governo, mas deixem os aposentados e trabalhadores em paz.
Já chega.
Carlos Irineu da Costa, 19 de julho de 2010
Reader Comments (4)
Seria surreal se não fosse real.
Meu caro, foi lindo, vc sabe, né? Sem comentários específicos pq não posso, vc tb sabe.
Mas, no geral, vou te contar q hoje eu ouvi uma piada do meu tio: estatisticamente, descobriu-se q 20 e poucos por cento dos acidentes são causados por alcoolizados. Aí a piada: os outros setenta e poucos por cento são causados pelos idiotas q não bebem. Basicamente assim. Idiota assim. Estatísticas...pra q servem mesmo? Achei a matéria desnecessária, quer saber?
O q há de imoral dentro do serviço público é intocável. Pq é justamente o q é político, o q é apadrinhado, q cria as brechas pros favorecimentos. Mas é melhor não falar disso tb. Ai, q ruim estar limitada. :O)
Acabou vigorando por aqui a idéia (insana, porque é uma inversão de valor) de que tudo o que é público é uma espécie de favor prestado. Chamam determinados pagamentos de "benefício"- embora cheguem a ser malefícios, em termos de valor. Lembro de um deputado que, num programa de debates, disse que os políticos tinham que ser mais respeitados porque, graças a eles, obras são feitas e o povo tem acesso a luz, água, asfalto etc. Na Inglaterra, isso já faz alguns anos, o parlamento propôs o aumento de um determinado imposto. Resultado: foi um protesto geral e teve um cara que entrou pela janela, com corda e tudo, vestido de Robin Hood. Desisitiram do tal aumento, claro.
sei que to um pouco atrasada com meu comentario, mas a curiosidade é grande:
vc mandou esse texto pra secao carta do leitor (se é que eles tem uma...)?
TODO MUNDO TINHA QUE LER ISSO!