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Entries in Escritos (47)

Quinta-feira
dez082011

o q nunca foi nem será só seu

vou me desdobrar em várias respostas. uma coisa me ocorre muito de cara: a contracapa do (meu livro de poesias) “Sala de Espelhos”:

vou escrever este livro inteiro para você, entretanto
vc sabe q será lido por todos e
q nunca foi nem será só seu; q nada do q digo aqui
é dirigido a vc, pq isto não é uma carta, pq
nada tenho para vc, é tarde demais. mas queria q soubesse,
pq agora q estou vivo tenho tanto a dizer, ainda qdo vc não venha
a me dizer as coisas q quisera ouvir. ainda qdo olhar se veja projetada
aqui não me venha pedir explicações não interprete
palavras, all that is seen
or seems is just a dream
within a dream, isto é
apenas uma sala de espelhos
num circo de vidas
ceci n’est pas une pipe
e nem mesmo representa um.

“comunicação”, vc me diz, no entanto este texto ressoa
apenas tuas próprias palavras: nada do q eu disse, nada
do q quisera dizer: nenhum som foi
possível aqui.
tenho um comentário sobre o que não está escrito nesta poesia.

a primeira parte é ao mesmo tempo uma carta de despedida para um amor perdido
(como eu teria escrito agora, se estivesse inspirado como estava naquela época)
mas é também o paradoxo que eu acho que quase todo texto tem:
eles (textos) existem, na cabeça do autor, em função de alguma coisa,
são (por vezes) dirigidos a alguém ou provêm de algum ‘fato’,
por mais que tornemos as coisas ficcionais, por mais que seja um fato imaginado;
além disso, sei que cada um terá uma leitura própria mas, paradoxalmente,
o livro publicado não ‘pertence’ mais ao autor nem a um leitor - ele é a soma de tudo
o que quiserem ler nele, e as leituras transcendem qualquer ‘desejo’ do autor quanto a dizer isso e aquilo;

daí a ideia seguinte, de que cada leitor se projeta na leitura, e os textos viram espelhos,
então, de certa forma, o “sentido original” do que eu possa escrever
fica sempre “por trás” daquilo que cada um vê ali, fica oculto pelas palavras,
embora só elas existam - palavras - e só elas ‘falem’ num livro.
mas não é a mim que cabe explicar nada, eu só disse aquilo que disse,
e eu só disse aquilo que você possa ter lido.

o que vem depois não é mais nem carta nem está falando com o leitor,
é minha tese de doutorado escrita em umas 6 estrofes,
quando eu cito ao mesmo tempo Poe e Magritte e, citando os dois,
com umas poucas palavras no meio eu falo sobre
minha teoria de que a linguagem não pode ‘representar’ nada,
que há uma distância intransponível entre a coisa-em-si (lá na Filosofia)
e nossa representação dessa coisa, e que, dream within a dream,
estamos para sempre presos nessa cadeia de remissões,
nessa (outra) sala de espelhos.

o quadro de Magritte é aquele famoso, em geral chamado mesmo de “Ceci n’est pas une pipe”,
http://en.wikipedia.org/wiki/File:MagrittePipe.jpg
mas Magritte o chamou de “A traição das imagens”, e, até onde consigo pensar,
ele olhava para a mesma coisa que eu olho (como teórico) :
o quadro é só a representação do objeto, nunca o objeto em si,
e aquela representação não contém *todo* o objeto - há muitas variações possíveis
em torno do cachimbo.

(incidentalmente, Magritte gostava muito de Poe, mas ninguém nunca vai saber
se foi por isso ou não que eu citei Poe junto a Magritte na poesia;
na verdade, uma vez que existe uma remissão, não me cabe dizer se
fiz de propósito, se só percebi depois ou se, como Magritte, eu também vejo ecos de Poe
aqui e ali)

e a ‘tese’ termina enunciando o paradoxo que em geral se coloca:
se um leitor só vai encontrar no texto aquilo que ele traz consigo,
se o texto é incapaz (no limite) de enunciar algo distinto da leitura,
então o que chamamos de “comunicação” é falso.

como no quadro de Magritte, contudo, o paradoxo da poesia (e do livro)
está no fato de que Magritte obviamente pintou um cachimbo e eu
obviamente
escrevi um livro.

(deixo vocês com a imagem do Gato de Alice, bem Schrödinger…)
Sábado
out222011

do começo

nunca teve um. começo.

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Terça-feira
out182011

coloque-se frente a uma tela em branco

Coloque-se frente a uma tela em branco. Sob seus dedos, você tem todos os textos possíveis – é uma combinatória, uma sequência de sequências finitas de teclas pressionadas. Escrever é trazer para Dentro parte do que está Fora.

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Quarta-feira
ago032011

preconceitos e pressupostos - uma parábola moral

a história não é minha. a lembrança da história é minha, mas foi uma grande amiga, Daniela, que me contou essa história numa reunião de negócios poucos meses atrás. a história não é dela. o conceito de ‘autoria’, na verdade, é muitas vezes irrelevante, e gosto de poder dizer isso no meio de um parágrafo, como quem não quer nada (mas sempre quero).

voltei a lembrar da narrativa (Nikolai Semyonovich Leskov?) hoje, por conta de algo completamente diferente. como acho uma metáfora-parábola realmente boa de pensar sobre o problema de quem resolve antes, na própria cabeça, algo que ainda não aconteceu no Mundo lá fora”, quebro minha regra de não colocar no ar textos ‘genéricos’. [1]

narro:

 

um sujeito estava numa estrada do interior quando o pneu do carro furou. era quase noite e não havia movimento naquela estrada.

notou, desconsolado, que não tinha um macaco. pior ainda, descobriu que seu estepe estava vazio. nenhum carro à vista, sem celular para chamar socorro, ele ia esperar um longo tempo até alguém passar por aquela estrada. chovia, e ele iria ficar ensopado. precisava encontrar ajuda para sair dali. 

viu as luzes de uma pequena casa ao longe; parecia haver uma garagem ao lado. pensou que o dono da casa talvez possuísse um carro e, neste caso, teria um macaco, talvez mesmo um pneu reserva que pudesse emprestar. na pior das hipóteses, a casa teria um telefone e ele estaria abrigado até o socorro chegar.

caminhou para lá, feliz e esperançoso. imaginou-se batendo na campainha, a esposa simpática abrindo, crianças rindo, o marido levantando da TV (maridos sempre veem TV, esposas sempre abrem a porta) para ver quem era. simpático, tranquilo, uma boa pessoa. ele pediria desculpas pela intromissão, perguntaria se o dono da casa lhe emprestava um macaco. o senhor teria um estepe, talvez? não, entendo, não há problemas, mas eu poderia ao menos ligar para um posto ou borracheiro? ah, muito grato.

imaginou-se batendo à porta da casa, sendo recebido pelo dono da casa, desconfiado e irritado por ser interrompido em seu jantar. pediria desculpas, não queria incomodar, não ia nem pedir o estepe, mas poderia ao menos dar um telefonema? na verdade poderia falar sobre o pneu, o macaco, que ele devolveria em seguida. sim, entendia que era um desconhecido, mas essas coisas acontecem, olha, eu deixo um cheque como garantia para o senhor, caso eu não volte com o pneu e o macaco. 

enquanto andava, imaginou-se chegando à casa. os dois irmãos que moram sozinhos lá, fazendeiros e broncos (todo fazendeiro de histórias ou tem enorme coração ou é muito bronco), odiavam visitas, ainda mais na hora do jantar. quem é você, e o que quer? por que nos incomoda? bem, sim, sou um desconhecido, mas estou no meio dessa chuva. olha, meu carro quebrou lá na estrada… é, não dá mais para ver, agora está escuro, mas eu não viria andando, não é?, e tentou sorrir, mas não sentiu a menor simpatia.

eles não têm por que confiar em mim. eu não confiaria num estranho que viesse perturbar a minha paz no meio de um dia desses. e se eu for um lunático, um psicopata? os filmes enfiam isso na cabeça das pessoas, agora somos todos psicopatas armados querendo matar uns aos outros. o que os americanos não fazem com o mundo, eu só queria dar um telefonema, me abrigar da chuva.

não vão me deixar entrar. vão me barrar na porta, eu aqui no meio do nada, sem telefone, sem macaco. são pessoas sem coração, não são homens religiosos e têm toda razão em ter medo. devem estar armados, podem querer me ameaçar. eu, que viajo tanto de carro, sou tolo em não andar armado. há muitos psicopatas, eles podem me jogar no porão e me manter prisioneiro; se derem sumiço no carro a polícia vai ter trabalho para me encontrar, é uma longa estrada.

o que as pessoas têm de errado?, pensou. por que o mundo é assim tão violento? custava me emprestarem um macaco, um estepe? nem mesmo me deixam usar o telefone? quem pensam que sou?

assustado com os quatro marginais que iria encontrar na casa, mas sem outra saída, decidiu seguir em frente. 

quando chegou lá, bateu na campainha; deu um passo atrás, pronto para fugir correndo se necessário. assim que um sujeito sonolento abriu a porta, vociferou:

olha aqui, seu porco egoísta, eu só queria ajuda porque meu carro está parado lá na estrada. mas tudo bem, eu entendi, você não quer me emprestar o macaco e vai dizer que seu carro não tem estepe, não é? tá legal, tá legal, sei me virar sozinho e não preciso usar seu telefone, entendeu? agora fique aí bem quieto e nem pense em pegar sua arma ou aprontar alguma porque ando sempre armado. você não sabe com quem está se metendo, viu? acho o cúmulo da grosseria, tudo isso, mas você tem sorte, não vou levar para o lado pessoal e não quero brigas. adeus!  

virou-se e foi embora. o cara sequer teve tempo de esboçar uma reação.

lá dentro, a esposa estava fazendo o jantar e perguntou para o marido o que era. não sei, respondeu, um cara muito estranho dizendo que estava armado e falando coisas sobre querer roubar nosso estepe. parece que foi embora, mas é melhor ficarmos atentos. amanhã, quando for na cidade, vou mesmo comprar uma arma.

 

[1] argumentaria, com o Pierre Menard de Borges e uma pitada de Benjamin, mas sobretudo eu mesmo, que, ao narrar a história da minha forma, em meio a meus textos, criando outro contexto, a narrativa é um pouco outra, o que se conta tem outro propósito e, ainda que a estrutura permaneça semelhante, O Narrador, aqui, sou eu.

Sábado
jul302011

era noite, e chovia

Eu gosto de chuva e sinto falta dela. Não me lembro bem quando foi que choveu pela última vez aqui, mas acho que foi breve, chuva fina. Você já não estava comigo, nas últimas chuvas. Antes, lembro de nós dois, no telhado do prédio, vendo as luzes se moverem, lá embaixo, tudo pequeno e sem importância. Ficávamos abraçados, olhando para fora mas pensando um no outro. Eram tempos melhores. 

Mas hoje é diferente.

Gosto desses dias cinzas e um pouco mais frios. Acho que a única coisa à qual nunca me acostumei foram os invernos nos países do Norte — dias muito curtos e, nos dias pesados em que meu mundo ficava dentro da Rede, acordava cedo, tudo escuro, passava o dia em bunkers fechados de onde saía com tudo novamente escuro. Os dias sem dias.

Mas hoje é diferente. 

O barulho da chuva parece tornar a cidade mais silenciosa. Os gatos não saem na rua, ficam embaixo dos carros ou se protegem lá onde gatos se protegem da chuva. Não é dia de caçar, para eles. A chuva pesada leva a sujeira dos dias, tudo fica um pouco mais lento, mais quieto; posso quase sentir o espaço em volta mudando.

Um último gole de café, pego a Glock sobre a mesa, ajeito a H&K enquanto visto o impermeável, ligo os alarmes e saio.

Era noite lá fora, e chovia.