desbundante

Foto: Paula Anddrade [www.flickr.com/photos/paulapcda/]não estou aqui por conta de sua bunda - disse o escritor para a Musa, ele sentado na frente de seus muitos monitores, pensando que a Igreja nunca admitiu as provas reais da existência de Deus (logo ele, tão agnóstico, pensando nisso): mulheres, bundas, seios, olhares, sexo, cheiros (antes, não necessariamente durante, depois), pizza, chocolate, mais pizza. e ainda tinha o argumento teológico sobre O Deus do Café.

em breve retomaria a frase que tinha deixado no ar, mas passou um tempo vagando por entre aquelas idéias, olhou-a pelo espelho, deitada na cama em um negligé preto (ao menos ele achava que aquilo se chamava “negligé”, ele nunca entendera bem por que cada pequena coisa tinha um nome diferente de outra, por que não usavam ‘enrolada em um belo tecido preto’, que seria muito mais adequado do que o tal “negligé”), longos cabelos vermelhos contrastando com o preto e com a pele e com os olhos, que queimavam com alguma outra coisa para a qual nem ele tinha um nome, mas era “ela”; pensou que, se morresse naquela hora, seria uma boa visão para sua alma levar para… bom, qualquer lugar para onde as almas fossem, supondo, claro, que almas existissem. para terminar, pensou que ela, vista ao mesmo tempo de frente e de costas num espelho, tinha uma totalidade insana, algo surreal, algo que tornava qualquer escrita completamente dispensável e inútil.

e por isso mesmo sentia-se obrigado a escrever compulsivamente sobre ela e sobre as outras bundas com quem compartilhou diferentes momentos de sua vida. pensou se o povo que comprava “o apanhador no campo de centeio” e “o menino que soltava pipas” e “alguém que roubava livros” compraria também “o escritor que admirava bundas”. não era uma ironia, era como ele como ele via o mundo: um monte de perguntas, algumas bem confusas, muitas sem resposta possível.

não estou aqui por conta da sua bunda - repetiu, em tom mais pensativo. - se você não estivesse aqui para me ouvir, para me ler, para ser parte desse mundo que me inspira, sua bunda continuaria inegavelmente bela (o Real é aquilo que persiste para além de nossos desejos, ou nossa linguagem; lembra de quando falamos sobre isso, antes?) mas eu não estaria escrevendo. a linguagem é um excesso, uma sobra, pela sonoridade fácil também uma sombra; a linguagem certamente faz parte do Real mas o Real transcende a linguagem. bundas, por outro lado, são o que são, sem que nada precise ser dito, e isso é tão maior.

então - prosseguiu, olhando de volta para o monitor, onde havia outra imagem dela, agora ao lado de seu texto - …. então fica bem claro para mim que o “superficial”, aqui, sou eu, que só tenho a superfície dos meus textos, esses que não servem para nada se ninguém ler, enquanto sua bunda transcende tudo isso, ela existe como parte de você, seu corpo, aquilo que você é no mundo e, devo notar, ela é tão mais importante que os textos que sou eu quem pára e escreve sobre ela, e não o contrário.

olhou novamente para o espelho, viu que ela estava sorrindo, sorriu de volta, só que por dentro, colocou o fone e voltou a trabalhar naquele livro que parecia interminável.

Comments

[gil]

"ela, vista ao mesmo tempo de frente e de costas num espelho, tinha uma totalidade insana, algo surreal, algo que tornava qualquer escrita completamente dispensável e inútil"

faco questao de colar o trecho, pra ler de novo e mais uma vez... antológico. gostei demais, lindo, lindo. :-)