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Quarta-feira
ago032011

preconceitos e pressupostos - uma parábola moral

a história não é minha. a lembrança da história é minha, mas foi uma grande amiga, Daniela, que me contou essa história numa reunião de negócios poucos meses atrás. a história não é dela. o conceito de ‘autoria’, na verdade, é muitas vezes irrelevante, e gosto de poder dizer isso no meio de um parágrafo, como quem não quer nada (mas sempre quero).

voltei a lembrar da narrativa (Nikolai Semyonovich Leskov?) hoje, por conta de algo completamente diferente. como acho uma metáfora-parábola realmente boa de pensar sobre o problema de quem resolve antes, na própria cabeça, algo que ainda não aconteceu no Mundo lá fora”, quebro minha regra de não colocar no ar textos ‘genéricos’. [1]

narro:

 

um sujeito estava numa estrada do interior quando o pneu do carro furou. era quase noite e não havia movimento naquela estrada.

notou, desconsolado, que não tinha um macaco. pior ainda, descobriu que seu estepe estava vazio. nenhum carro à vista, sem celular para chamar socorro, ele ia esperar um longo tempo até alguém passar por aquela estrada. chovia, e ele iria ficar ensopado. precisava encontrar ajuda para sair dali. 

viu as luzes de uma pequena casa ao longe; parecia haver uma garagem ao lado. pensou que o dono da casa talvez possuísse um carro e, neste caso, teria um macaco, talvez mesmo um pneu reserva que pudesse emprestar. na pior das hipóteses, a casa teria um telefone e ele estaria abrigado até o socorro chegar.

caminhou para lá, feliz e esperançoso. imaginou-se batendo na campainha, a esposa simpática abrindo, crianças rindo, o marido levantando da TV (maridos sempre veem TV, esposas sempre abrem a porta) para ver quem era. simpático, tranquilo, uma boa pessoa. ele pediria desculpas pela intromissão, perguntaria se o dono da casa lhe emprestava um macaco. o senhor teria um estepe, talvez? não, entendo, não há problemas, mas eu poderia ao menos ligar para um posto ou borracheiro? ah, muito grato.

imaginou-se batendo à porta da casa, sendo recebido pelo dono da casa, desconfiado e irritado por ser interrompido em seu jantar. pediria desculpas, não queria incomodar, não ia nem pedir o estepe, mas poderia ao menos dar um telefonema? na verdade poderia falar sobre o pneu, o macaco, que ele devolveria em seguida. sim, entendia que era um desconhecido, mas essas coisas acontecem, olha, eu deixo um cheque como garantia para o senhor, caso eu não volte com o pneu e o macaco. 

enquanto andava, imaginou-se chegando à casa. os dois irmãos que moram sozinhos lá, fazendeiros e broncos (todo fazendeiro de histórias ou tem enorme coração ou é muito bronco), odiavam visitas, ainda mais na hora do jantar. quem é você, e o que quer? por que nos incomoda? bem, sim, sou um desconhecido, mas estou no meio dessa chuva. olha, meu carro quebrou lá na estrada… é, não dá mais para ver, agora está escuro, mas eu não viria andando, não é?, e tentou sorrir, mas não sentiu a menor simpatia.

eles não têm por que confiar em mim. eu não confiaria num estranho que viesse perturbar a minha paz no meio de um dia desses. e se eu for um lunático, um psicopata? os filmes enfiam isso na cabeça das pessoas, agora somos todos psicopatas armados querendo matar uns aos outros. o que os americanos não fazem com o mundo, eu só queria dar um telefonema, me abrigar da chuva.

não vão me deixar entrar. vão me barrar na porta, eu aqui no meio do nada, sem telefone, sem macaco. são pessoas sem coração, não são homens religiosos e têm toda razão em ter medo. devem estar armados, podem querer me ameaçar. eu, que viajo tanto de carro, sou tolo em não andar armado. há muitos psicopatas, eles podem me jogar no porão e me manter prisioneiro; se derem sumiço no carro a polícia vai ter trabalho para me encontrar, é uma longa estrada.

o que as pessoas têm de errado?, pensou. por que o mundo é assim tão violento? custava me emprestarem um macaco, um estepe? nem mesmo me deixam usar o telefone? quem pensam que sou?

assustado com os quatro marginais que iria encontrar na casa, mas sem outra saída, decidiu seguir em frente. 

quando chegou lá, bateu na campainha; deu um passo atrás, pronto para fugir correndo se necessário. assim que um sujeito sonolento abriu a porta, vociferou:

olha aqui, seu porco egoísta, eu só queria ajuda porque meu carro está parado lá na estrada. mas tudo bem, eu entendi, você não quer me emprestar o macaco e vai dizer que seu carro não tem estepe, não é? tá legal, tá legal, sei me virar sozinho e não preciso usar seu telefone, entendeu? agora fique aí bem quieto e nem pense em pegar sua arma ou aprontar alguma porque ando sempre armado. você não sabe com quem está se metendo, viu? acho o cúmulo da grosseria, tudo isso, mas você tem sorte, não vou levar para o lado pessoal e não quero brigas. adeus!  

virou-se e foi embora. o cara sequer teve tempo de esboçar uma reação.

lá dentro, a esposa estava fazendo o jantar e perguntou para o marido o que era. não sei, respondeu, um cara muito estranho dizendo que estava armado e falando coisas sobre querer roubar nosso estepe. parece que foi embora, mas é melhor ficarmos atentos. amanhã, quando for na cidade, vou mesmo comprar uma arma.

 

[1] argumentaria, com o Pierre Menard de Borges e uma pitada de Benjamin, mas sobretudo eu mesmo, que, ao narrar a história da minha forma, em meio a meus textos, criando outro contexto, a narrativa é um pouco outra, o que se conta tem outro propósito e, ainda que a estrutura permaneça semelhante, O Narrador, aqui, sou eu.

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