profissão: escritor
o cara muito oficial do outro lado do balcão olhou para o formulário, olhou para mim, tentou usar a visão de Raios-X mas lembrou que não tinha, olhou de novo para o formulário, tentou uma primeira expressão perplexa, resolveu-se:
- o senhor diz aqui que sua profissão é escritor.
- correto.
- você é jornalista?
- não, jornalistas também escrevem, mas são coisas muito diferentes: sou escritor.
- mas você trabalha para um jornal ou revista?
- não, veja, esses são os jornalistas.
o homem encontrou uma nova expressão de perplexidade em seu âmago de funcionário muito oficial. eu estava sendo muito paciente, sobretudo porque eu era só um personagem de mim mesmo em um pequeno conto para um blog - é mais fácil ser paciente quando se é personagem.
- mas... então o senhor escreve o quê?
estávamos numa disputa de tênis de perplexidade. acabara de voltar para o meu campo.
- ué, escrevo ... textos, o que mais poderia escrever?
- sim, sim, textos, mas o senhor escreve para onde?
- ah, entendo! não, lugar nenhum.
- lugar nenhum? como? não escreve para ninguém?
- alguém, claro. tenho leitores, todos os 10 ou 15 que sobraram, os que ainda conseguem acompanhar meus escritos.
- sim, mas tem que escrever... não sei, livros, algo assim. publicar, vender. é uma profissão, ora!
- claro, claro, mas não é como feira, digo, para alguns é, mas não para mim. podem ser livros, podem ser e-mails, eu posso estar anotando coisas em um caderno ... não importa muito.
- então o senhor fica escrevendo o dia inteiro. em guardanapos. e não trabalha?
por que eu não transformava aquela conversa em um roteiro e mandava para a TV? estava perdendo uma excelente oportunidade de anotar aquilo tudo. mas eu precisava do carimbo, não de mais um conto. expliquei de novo.
- veja: meu trabalho é escrever. e acho muito difícil, porque não tem formulário para isso com os campos indicados – disse meu personagem, dando uma de esperto para cima do oficial. ainda assim, precisava daquele carimbo, não queria que o homem ficasse irritado. o funcionário estava na terceira encarnação de sua expressão de perplexidade.
- o senhor é estabelecido em...
- em casa?
- vou colocar aqui "doméstico".
- mas não sou empregado doméstico!, eu sou um autônomo! (nada contra os domésticos, claro – ninguém tem nada contra nada, atualmente.)
- não importa. se é em casa, este campo aqui deve ser preenchido como "doméstico". e o senhor trabalha em casa, de qualquer forma.
- algumas vezes. posso sair, tomar café. um pão de queijo com o café. posso até escrever na rua, bolas.
- como assim? leva um bloco e escreve andando? ou abre um laptop na praia?
- se eu abrisse um laptop na praia, a máquina ia ficar toda suja enquanto não fosse roubada! que idéia... não: nós, escritores, aprendemos com o tempo a escrever na cabeça.
- sem papel? sem computador?
- é. por exemplo: estou em um engarrafamento, vindo para cá, e penso em um trecho para um livro ou algo novo para o site.
- e aí anota?
- mentalmente.
- e como faz para lembrar disso?
- muito sinceramente, não sei. acho que é um dom. ou uma deficiência mental.
- me soa meio maluco. e como se ganha dinheiro nisso?
- o quê? escrevendo?
- é, o senhor diz que é profissão, mas acho que isso é coisa de vagabundo.
- o senhor diz, "vagabundo" como surfar ou jogar videogames, por exemplo.
- isso! - disse o homem, feliz por ter encontrado algo que ele conhecesse por ter visto na TV ou lido em algum jornal - os surfistas e essa molecada que joga também não fazem nada!
- o senhor já parou para pensar em quão difícil é encarar uma onda de 10 metros?
- não, sei lá, parece fácil, tem a prancha e tudo.
- o senhor já viu o estrago que uma onda faz quando o surfista sai errado de um tubo? a onda pode quebrar a prancha e/ou matar o cara! muita gente já se quebrou feio assim.
- hum. não tinha pensado nisso.
- surfe é sério, camarada. e escrever é igualmente perigoso.
- como assim, perigoso? o teclado vai atacar o senhor? - acrescentou, com sarcasmo.
- não, mas podem ameaçar você de morte, por exemplo. é perigoso porque escritores colocam a cara no mundo e têm que falar o que pensam. um pouco pior, na verdade: temos que inventar personagens e toda uma situação em volta só para dizer o que pensamos sobre, por exemplo, escrever.
- e daí?
- não tem "e" nada, é só isso. depois as pessoas vão ler os textos, os livros – qualquer um pode ler, é público, está impresso ou na web, tanto faz – e vão ficar interpretando. o senhor já foi interpretado?
- não sei nem o que é isso...
- o senhor é muito feliz, sabia? as pessoas vêm aqui, pegam um carimbo com o senhor, que já sabe até onde fica o carimbo (eu nunca sei onde ficam as personagens, nem muito menos quando é para acabar um conto, o que só piora se for um romance) e ninguém fica tecendo teorias esquisitonas sobre a profunda relação de divergência que o senhor tem com a realidade supostamente concreta, nem pegam seu personagem e falam que aquilo ali – que é só texto, funciona para ser texto e nada mais, e todo escritor sabe disso, mas parece que o resto do povo não sabe, sobretudo não o povo crítico – .... e os caras falam que seu personagem representa uma "masculinidade bruta sublimada no seu ego de intelectual". você acorda de manhã e isso está no jornal. que tal?
- como assim?
- exato, é o que me pergunto: como assim? porque tudo o que fiz, ou o que meu autor fez ao me criar, foi gerar um personagem que pudesse cumprir sua função. não tem essa história de "sublimar" nada, isso é psicologia de botequim e não seria nem um botequim muito bem freqüentado. mas, ainda assim, invariavelmente você vai acordar pela manhã com interpretações. se der azar, publicam um livro inteiro com "ensaios" analisando sua obra. me dá medo só de pensar.
- então ... o senhor não veio aqui pegar o carimbo para .... como é, "subliminar" nada?
- não. quero só o carimbo. para ter o documento. e dar entrada no restante dos papéis.
- ah. agora entendi. mas só tem um problema...
- o que é?
- aqui onde diz "profissão", o senhor colocou "escritor".