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Terça-feira
jul272010

O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam

PS – O título da (provavelmente excelente) tradução de Davi Arrigucci Jr. para a Companhia das Letras é “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”. Nada contra, nem poderia. É só que eu costumo enveredar por caminhos mais vezes do que caminho por veredas, então ‘ouço’ o título como “caminhos que se bifurcam”. Além disso, por conta do que o texto de Borges diz e de como interpreto o jogo de sentidos, não posso pensar em ‘veredas’ - mas continuar discutindo isso seria uma bifurcação do rumo original.

Segue, a título de rápido exemplo de que preciso para continuar o que já pensei mas ainda não escrevi, o trecho central do conto de Borges. Em espanhol. Que é essencialmente o mesmo que português, basta ler sem pensar que não é!   ~;0)

Antes de exhumar esta carta, yo me había preguntado de qué manera un libro puede ser infinito. No conjeturé otro procedimiento que el de un volumen cíclico, circular. Un volumen cuya última página fuera idéntica a la primera, con posibilidad de continuar indefinidamente. Recordé también esa noche que está en el centro de las 1001 Noches, cuando la reina Shahrazad (por una mágica distracción del copista) se pone a referir textualmente la historia de las 1001 Noches, con riesgo de llegar otra vez a la noche en que la refiere, y así hasta lo infinito. Imaginé también una obra platónica, hereditaria, trasmitida de padre a hijo, en la que cada nuevo individuo agregara un capítulo o corrigiera con piadoso cuidado la página de los mayores. Esas conjeturas me distrajeron; pero ninguna parecía corresponder, siquiera de un modo remoto, a los contradictorios capítulos de Ts’ui Pên. En esa perplejidad, me remitieron de Oxford el manuscrito que usted ha examinado. Me detuve, como es natural, en la frase: Dejo a los varios porvenires (no a todos) mi jardín de senderos que se bifurcan. Casi en el acto comprendí; el jardín de senderos que se bifurcan era la novela caótica; la frase varios porvenires (no a todos) me sugirió la imagen de la bifurcación en el tiempo, no en el espacio. La relectura general de la obra confirmó esa teoría. En todas las ficciones, cada vez que un hombre se enfrenta con diversas alternativas, opta por una y elimina las otras; en la del casi inextricable Ts’ui Pên, opta — simultáneamente — por todas. Crea, así, diversos porvenires, diversos tiempos, que también proliferan y se bifurcan. De ahí las contradicciones de la novela. Fang, digamos, tiene un secreto; un desconocido llama a su puerta; Fang resuelve matarlo. Naturalmente, hay varios desenlaces posibles: Fang puede matar al intruso, el intruso puede matar a Fang, ambos pueden salvarse, ambos pueden morir, etcétera. En la obra de Ts’ui Pên, todos los desenlaces ocurren; cada uno es el punto de partida de otras bifurcaciones. [1]

Retomo, altero: em todas as ficções, cada vez que um autor se depara com diferentes alternativas, opta por uma delas e elimina todas as outras. Na obra de Ts’ui Pên, contudo, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações.

Que isso tenha dado origem à Mecânica Quântica, é inquestionável. Heisenberg, von Neumann, Einstein, Böhr e meu querido Schrödinger, entre outros (tá, inclui o Hilbert, um cara legal) estavam discutindo o assunto em 1920 e poucos. Claro que prenunciaram a obra de Borges, que materializaria o conceito de quântica em sua ficção uns anos mais tarde.

Que este conto seja citado de forma muito clara no brilhante (mas quase ninguém concorda comigo e minha esposa e cancelaram) seriado estadunidense FlashForward … bom, a premissa do livro (de Robert J. Sawyer) que deu origem à série poderia muito bem ser resumida ao conto de Borges, numa versão um pouco diferente, ampliada, em outro contexto, com uma premissa muito melhor do que, chutando, 80% do que se produz em TV. Perdeu-se, já era, bifurcamos, vamos adiante.

Minha questão é outra. Minha questão é o que você faz quando acredita – e acredita como autor, não só como físico – … o que você faz quando acredita que é preciso, mesmo, dar conta de todas as possibilidades a cada vez que, num texto, há uma bifurcação? Você elimina as outras, como é costume fazer para tornar uma história “coerente”? Você escreve um livro circular? Você escreve um romance no qual o último capítulo é igual ao primeiro, porém diferente, e tudo que vem no meio pode ser lido como meta-referências ao próprio livro que o leitor lê? Você inventa uma escrita hipertextual em 1940?

Bem, talvez você não consiga escrever, porque o Infinito, assim como as idéias infinitamente interessantes, são inerentemente paralisantes para um autor. Então, frente ao conceito da Biblioteca de Babel, à idéia das ruínas circulares – uma metáfora linda sobre o ato de escrever, mas é um conto chato, medíocre - talvez você fique a tal ponto preso nas múltiplas possibilidades que o tecido da escrita não possa se adensar.

Naturalmente, há vários desfechos possíveis. E um deles é retomar o tema sucessivamente em vários contos: Pierre Menard, ‘Tlön, Uqbarm Orbis Tertius’, As Ruínas Circulares, A Biblioteca de Babel …. todos ‘dentro’ do Jardim de Borges. Certamente a idéia contida na “coleção de idéias” do Jardim de Caminhos que se Bifurcam é uma das coisas mais formidáveis produzidas em literatura no século 20. A questão é que, embora isso faça de Borges um gênio, um homem com idéias muito adiante de seu tempo, muito peculiarmente isso não faz dele um bom escritor – pelo contrário, me parece que é justamente isso que impede que a escrita de Borges deixe seu eterno devir [2] para que suas idéias se concretizem, não em um Jardim, mas em uma escrita.

É hora de bifurcar, também, até porque acho que é preciso falar de Fernando Pessoa quando se fala de Borges e de ficções da escrita.

File / Save / Close. I’m out there.

[1] Jorge Luis Borges, Ficciones, “El jardin de senderos que se bifurcan”, 1941.

[2] “Devir”, aqui, como o campo de potenciais quânticos que podem se realizar, mas talvez nunca se realizem de fato; e ficção não é uma equação matemática a ser lida como uma função de onda probabilística, o que seria bem interessante, contudo.

Reader Comments (5)

Quando eu escrevo, na maioria das vezes, o caminho que leva ao final costuma aparecer do nada, de modo caprichoso e inesperado, impondo-se às possibilidades anteriormente imaginadas (que são logo esquecidas). De modo geral, começo pelo fim e, a partir daí, meu desafio passa a ser um moonwalk literário.

d.C. 2010/5 | Unregistered CommenterAdriano

A coisa da escrita infinita me lembrou do Macedônio!

d.C. 2010/5 | Unregistered CommenterAdriano

Belo texto, Carlos! E vc percebeu q ao redigí-lo vc materializou a própria idéia q veiculava? Vc abriu caminhos com perguntas sobre o q um autor faz qdo está frente às bifurcações e seguiu um deles, com a (proposta de) conclusão de q a dúvida é paralisante e a escrita não se adensa. Tô falando isso só pra evidenciar q acontece bem naturalmente, embora Borges soe complexo. Concordo com o q vc diz das múltiplas possibilidades. Particularmente, penso q o autor pode usá-las para a construção de um texto rico, para, por exemplo, causar estranhamentos. Mas é preciso evitar q essa seja uma angústia do leitor senão o texto fica ilegível. É preciso fechar numa direção. Mesmo q a idéia seja "deixar em aberto", é preciso fazer isso de forma consciente.

d.C. 2010/1 | Unregistered CommenterAna Lúcia

Adriano: de fato acho que, para encontrar um fim, nós, que escrevemos, precisamos começar, ou estar no meio. Nem sempre a (nossa própria) escrita tolera o que tínhamos pensado e acho que, para escrever um bom texto, é preciso entender qual o "fio" que o texto está formando, e depois segui-lo.
(De onde minhas muitas 'brigas' com o conceito de 'autoria' e da 'posse' [como domínio de um Logos] do texto pelo autor, e a insistência que, talvez além do 'parricídio do autor' [Derrida] quando este é libertado no mundo [.. longa tese aqui ..] há uma identidade no texto que o autor já não comanda mais.
Criamos, e não digo que a criatura se volte contra nós [Shelley], mas digo que a criatura-texto assume identidade própria e tudo o que podemos fazer é dar um pouco mais de impulso ou tentar conter umas coisas.
Sobre Macedônio, estou esperando um ex-colega de curso começar a ler o Macedônio para tomar coragem e seguir o caminho!

Ana: obrigado! Mas, sim, eu consigo olhar à frente enquanto escrevo, embora muitas vezes meus leitores vejam muito mais que eu e me surpreendam com idéias novas sobre o texto que já não controlo mais [vide resposta anterior e artigo futuro].
O que eu digo sobre Borges é que me parece ter uma espécie de "pretensão" nele que as pessoas, por algum motivo, hesitam em 'desmascarar' - as idéias são formidáveis e, talvez, com um trabalho conceitual de ficcionalização do real (ou de recriação do real como uma transposição ficcional em mundos possíveis, isso é bem legal mas é longo) .... é um dos Grandes Autores, alguém especial entre os que são especiais.
MAS a escrita não. A escrita me soa banal porque eu a leio como "utilitária": não existe 'autoria', não vejo estrutura, vejo só um texto que "serve" de veículo para idéias. Vira panfleto - não no sentido político, mas panfleto é isso: algo que serve para anunciar outra coisa, não vale por si mesmo.
Continuo achando que vou ser banido do convívio com literatos por dizer isso, mas eu sou sincero, é o que penso. Preciso apenas me alonga um pouco no assunto e explicar melhor algumas coisas.
(Dois comentários longos valem como um texto?)

CDC

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