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Terça-feira
ago302011

Por que não deixamos Benjamin em paz e vamos, sei lá, ‘pensar’?

A resposta é “não sei”, mas foi uma das várias coisas que eu pensei ao ler, pela manhã, a resenha do livro de uma autora nacional (nova? não sei, não a conheço ainda, mas eu desconheço tantas coisas) em um dos poucos cadernos ‘de livros’ que nos sobraram.

Vou dizer coisas polêmicas – depois cada leitor se diverte olhando para dentro, e olhando em volta, e pensando o que acha sobre tais coisas polêmicas.

A primeira é: vamos combinar que é possível ir à esquina e falar sobre um livro sem ter que citar Benjamin? Vou ser um pouco mais ousado e dizer que, das pessoas que pensam, boa parte conseguiria pensar sem citar Benjamin. Parecem contudo estar acometidas por algum vírus, pois fato é que não conseguem. Espirram Benjamin no texto. Espirram Benjamin quando me enviam mails. Benjamin disse, Benjamin postulou, segundo Benjamin.

Sagrada que seja a vossa palavra, Benjamin, não vejo ninguém falando da complexa relação de Benjamin com seu momento histórico, e pouca gente formula teses a respeito de um pensador ‘hegeliano marxista’ que era fascinado por Baudelaire e Proust, vidrado pelas vitrines capitalistas de Paris de sua época e por aquela outra forma de arte decadente, o Romantismo… Acho que Baudelaire e Proust é o mais distante possível que você pode se colocar de Hegel e Marx.

Menos gente ainda vai escavar a imensidão (literal) de “Passagens” e relacioná-la, digamos, às teses sobre a História de Benjamin, ou criar novos esboços sobre sua tentativa de mapear – no melhor estilo Borges – toda a Então Modernidade em todas as suas formas de expressão para _____. Não sei o que vem depois desse “para”, talvez nenhum de nós possa saber, porque o autor morreu e nos deixou com um fragmento de fragmentos em mãos. Creio que temos mais dúvidas sobre Benjamin do que coragem para admitir este fato. [1]

Ainda assim, por que não falamos sobre Hegel na obra de Benjamin, por que não contextualizamos historicamente suas falas naquele momento tão específico de produção do pensamento e saímos falando sobre “a Obra de Arte” e “o Narrador” como se, de 1930 para cá, essas palavras-conceito ainda tivesse algum possível sentido em comum?

Não sei. Minha hipótese médica, com profusão de dados clínicos empíricos mas profundamente contestável conceitualmente, é que o vírus de que algumas pessoas estão acometidas as impede de pensar algo novo. Ora, todos sabemos que é impossível citar Benjamin para formular a base de uma leitura crítica do próprio Benjamin, de onde é bem mais seguro não formular uma leitura crítica de Benjamin. Para tal seria preciso — valha-me deus criador — pensar algo original a respeito de sua obra.

A outra coisa (pode ser a “segunda”, porque houve uma “primeira”, mas não sei contar argumentos) é talvez devêssemos combinar que Benjamin não escreveu um texto chamado “O Narrador”. Paradoxal, porque este texto nunca escrito é frequentemente citado por todo mundo.

Mas… mas… mas…. e o texto sobre Leskov? Ah, vocês dizem, aquele texto que se chama “reflexões sobre a[s] obra[s] de Nikolai Leskov”, Leskov que, na melhor tradição acadêmica contemporânea quase ninguém se obriga a ler para ter uma visão crítica sobre a visão crítica de Benjamin, Leskov que foi apagado para se tornar “O Narrador”?

É, este texto. Quem costuma citar o tal narrador de Benjamin sem ter lido Leskov por favor faça um exame de consciência metodológica. Obrigado.

Retomo. Na tradução para o francês de Maurice de Gandillac – que estudou de fato com Benjamin, até onde me lembro do que ele me disse muitos anos atrás –, leio “Le Narrateur”, mas quase todas as traduções para o inglês falam sobre “The Storyteller” – o contador de histórias. Provavelmente porque “narrative” é uma palavra comum em inglês, mas “the narrator” soa só como alguém escrevendo errado.

Do nosso lado, “o narrador” é aquele cara que todo mundo conhece, estudamos esse cara desde o colégio – logo, desde os 8 ~ 12 anos de idade ‘sabemos’ o que é um narrador (“é quem conta a história”, diz Dona Tetéia [2]). Mas “o contador de histórias” – the storyteller –, sabemos todos, é alguém que apresenta uma peça de teatro infantil aos domingos. Não é um Tema Literário Academicamente Relevante, bolas!

Volto. Leio todos esses que citam o tal “Narrador” com uma certa angústia, porque parece a eles que seja uma Teoria Atemporal santificada por Benjamin sobre …. ?  Sei lá: o que seria uma teoria válida, aqui?, que nos fosse útil hoje, para falar sobre livros de hoje? O que seria uma teoria que desse conta do fim do romantismo e da mudança do romance, como forma principal da escrita, para algo que já não é mais o romance, mas continua sendo, óbvio, uma ‘narrativa’?

Me perco, tergiverso. Peço desculpas, mas é uma condição frequente das pessoas acometidas por este mal que é o pensamento radical [3].

Discordando ou não de traduzir o “narrador” como “o contador de estórias” (vamos concordar que nossa abordagem do texto – e as apropriações indevidas que alguns, viróticos apressados, poderiam cometer ao lê-lo – muda muito quando trocamos essa figura quase sobre-humana e a-histórica, um imperativo categórico que Kant por acaso não listou - O Narrador - pela figura muito mais humana, transitória e frágil do “contador de histórias” – Homero, Faulkner, J.Conrad… esses caras.

Fico ainda mais angustiado porque todo mundo parece esquecer que este subtítulo de Benjamin - “Reflexões sobre as obras de Nikolai Leskov” - não pretende ser “Apontamentos para novos rumos da Teoria da Literatura”. Talvez Benjamin não pretendesse que seu texto fosse o Fundamento Canônico para a Discussão da Figura do Narrador na Modernidade e em Tudo O Que Veio Depois. (Lamento, o pós-moderno é passado, temos que nos desligar disso, não vou usar o termo aqui.)

Se fôssemos rigorosos, ou se tivéssemos boa memória histórica, teríamos ainda que contextualizar um pouco quando, como e por que Benjamin estava escrevendo sobre Leskov e narrando – Benjamin foi um dos grandes Narradores do século 20 - outra das tantas ‘mortes’ disso e daquilo a que assistimos ao longo do século 20.

Era 1936 quando Benjamin resolveu falar sobre Leskov e o folclore e, talvez sem que ele soubesse, Faulkner, bem longe, estava mudando a história de como se conta histórias com Absalom! Absalom!, que talvez seja, como, ahn, ‘narrativa’, frontalmente contrário ao conceito de Benjamin sobre, hum, ‘narrativas’.

Isso tudo, contudo, é minha curta introdução para dizer que li uma ‘resenha crítica’, pela manhã, que me deixou muito irritado porque era mais uma longa citação de Benjamin do que uma tentativa honesta de falar sobre o livro em questão. E, completamente indiferente ao que o artigo tinha a me dizer sobre Benjamin em duas colunas de jornal, fiquei decepcionado porque acabei não sabendo sobre o que falava o livro que foi convenientemente apagado da tal resenha. Preciso retomar isso mais à frente.

“O Narrador”, de qualquer forma, me soa muito como “O contador de histórias na obra de Leskov” e acho que isso é algo que vale um texto, meu tempo, e uns anos de estudo.

 

[1] Não citarei ninguém aqui, neste quase-manifesto contra citações, mas, se fosse citar, citaria um ensaio iluminado de Hannah Arendt chamado “Walter Benjamin: 1892-1940”, não só uma declaração de amor a Benjamin como também uma percepção muito sensível sobre as contradições do autor.

[2] Mas conta que história?, e o que é exatamente essa coisa de “contar”?, e até que ponto quem “conta” é quem narra?, e quem aqui foi ler Genette para tentar sair dessa trama infindável onde mesmo Foucault se perdeu?

[3] Traduzindo “as in” como “tipo”, para não soar pedante, radical tipo aquele que funda a si mesmo, ‘de raiz’, não o que é radicalmente contra ou a favor de coisas.

Terça-feira
jul272010

O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam

PS – O título da (provavelmente excelente) tradução de Davi Arrigucci Jr. para a Companhia das Letras é “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”. Nada contra, nem poderia. É só que eu costumo enveredar por caminhos mais vezes do que caminho por veredas, então ‘ouço’ o título como “caminhos que se bifurcam”. Além disso, por conta do que o texto de Borges diz e de como interpreto o jogo de sentidos, não posso pensar em ‘veredas’ - mas continuar discutindo isso seria uma bifurcação do rumo original.

Segue, a título de rápido exemplo de que preciso para continuar o que já pensei mas ainda não escrevi, o trecho central do conto de Borges. Em espanhol. Que é essencialmente o mesmo que português, basta ler sem pensar que não é!   ~;0)

Antes de exhumar esta carta, yo me había preguntado de qué manera un libro puede ser infinito. No conjeturé otro procedimiento que el de un volumen cíclico, circular. Un volumen cuya última página fuera idéntica a la primera, con posibilidad de continuar indefinidamente. Recordé también esa noche que está en el centro de las 1001 Noches, cuando la reina Shahrazad (por una mágica distracción del copista) se pone a referir textualmente la historia de las 1001 Noches, con riesgo de llegar otra vez a la noche en que la refiere, y así hasta lo infinito. Imaginé también una obra platónica, hereditaria, trasmitida de padre a hijo, en la que cada nuevo individuo agregara un capítulo o corrigiera con piadoso cuidado la página de los mayores. Esas conjeturas me distrajeron; pero ninguna parecía corresponder, siquiera de un modo remoto, a los contradictorios capítulos de Ts’ui Pên. En esa perplejidad, me remitieron de Oxford el manuscrito que usted ha examinado. Me detuve, como es natural, en la frase: Dejo a los varios porvenires (no a todos) mi jardín de senderos que se bifurcan. Casi en el acto comprendí; el jardín de senderos que se bifurcan era la novela caótica; la frase varios porvenires (no a todos) me sugirió la imagen de la bifurcación en el tiempo, no en el espacio. La relectura general de la obra confirmó esa teoría. En todas las ficciones, cada vez que un hombre se enfrenta con diversas alternativas, opta por una y elimina las otras; en la del casi inextricable Ts’ui Pên, opta — simultáneamente — por todas. Crea, así, diversos porvenires, diversos tiempos, que también proliferan y se bifurcan. De ahí las contradicciones de la novela. Fang, digamos, tiene un secreto; un desconocido llama a su puerta; Fang resuelve matarlo. Naturalmente, hay varios desenlaces posibles: Fang puede matar al intruso, el intruso puede matar a Fang, ambos pueden salvarse, ambos pueden morir, etcétera. En la obra de Ts’ui Pên, todos los desenlaces ocurren; cada uno es el punto de partida de otras bifurcaciones. [1]

Retomo, altero: em todas as ficções, cada vez que um autor se depara com diferentes alternativas, opta por uma delas e elimina todas as outras. Na obra de Ts’ui Pên, contudo, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações.

Que isso tenha dado origem à Mecânica Quântica, é inquestionável. Heisenberg, von Neumann, Einstein, Böhr e meu querido Schrödinger, entre outros (tá, inclui o Hilbert, um cara legal) estavam discutindo o assunto em 1920 e poucos. Claro que prenunciaram a obra de Borges, que materializaria o conceito de quântica em sua ficção uns anos mais tarde.

Que este conto seja citado de forma muito clara no brilhante (mas quase ninguém concorda comigo e minha esposa e cancelaram) seriado estadunidense FlashForward … bom, a premissa do livro (de Robert J. Sawyer) que deu origem à série poderia muito bem ser resumida ao conto de Borges, numa versão um pouco diferente, ampliada, em outro contexto, com uma premissa muito melhor do que, chutando, 80% do que se produz em TV. Perdeu-se, já era, bifurcamos, vamos adiante.

Minha questão é outra. Minha questão é o que você faz quando acredita – e acredita como autor, não só como físico – … o que você faz quando acredita que é preciso, mesmo, dar conta de todas as possibilidades a cada vez que, num texto, há uma bifurcação? Você elimina as outras, como é costume fazer para tornar uma história “coerente”? Você escreve um livro circular? Você escreve um romance no qual o último capítulo é igual ao primeiro, porém diferente, e tudo que vem no meio pode ser lido como meta-referências ao próprio livro que o leitor lê? Você inventa uma escrita hipertextual em 1940?

Bem, talvez você não consiga escrever, porque o Infinito, assim como as idéias infinitamente interessantes, são inerentemente paralisantes para um autor. Então, frente ao conceito da Biblioteca de Babel, à idéia das ruínas circulares – uma metáfora linda sobre o ato de escrever, mas é um conto chato, medíocre - talvez você fique a tal ponto preso nas múltiplas possibilidades que o tecido da escrita não possa se adensar.

Naturalmente, há vários desfechos possíveis. E um deles é retomar o tema sucessivamente em vários contos: Pierre Menard, ‘Tlön, Uqbarm Orbis Tertius’, As Ruínas Circulares, A Biblioteca de Babel …. todos ‘dentro’ do Jardim de Borges. Certamente a idéia contida na “coleção de idéias” do Jardim de Caminhos que se Bifurcam é uma das coisas mais formidáveis produzidas em literatura no século 20. A questão é que, embora isso faça de Borges um gênio, um homem com idéias muito adiante de seu tempo, muito peculiarmente isso não faz dele um bom escritor – pelo contrário, me parece que é justamente isso que impede que a escrita de Borges deixe seu eterno devir [2] para que suas idéias se concretizem, não em um Jardim, mas em uma escrita.

É hora de bifurcar, também, até porque acho que é preciso falar de Fernando Pessoa quando se fala de Borges e de ficções da escrita.

File / Save / Close. I’m out there.

[1] Jorge Luis Borges, Ficciones, “El jardin de senderos que se bifurcan”, 1941.

[2] “Devir”, aqui, como o campo de potenciais quânticos que podem se realizar, mas talvez nunca se realizem de fato; e ficção não é uma equação matemática a ser lida como uma função de onda probabilística, o que seria bem interessante, contudo.

Terça-feira
jul272010

Borges e Calvino, PUC, ca. 1990

Eu passei a faculdade de letras com dois grandes traumas: Borges e Calvino. “Todo mundo” em volta não parava de me dizer quão genial era esse ou aquele texto de Borges e como “Se um viajante numa noite de inverno” era o mais fantástico dos livros.

Eu, que nunca tive ‘dificuldade’ em ler ninguém e sequer concebia o conceito de ‘autor difícil’, eu, que achava bonito e sonoro ler “Galáxias”, do Haroldo de Campos (é semi-incompreensível boa parte do tempo, mas é um dos livros mais belos que conheço), eu achava que eu tinha algum “problema” porque não conseguia passar do início do “Viajante” – na época, esgotadíssimo, mas eu tinha conseguido um exemplar emprestado [aliás, Adriana, ainda está comigo; se você passar no site, esteja onde estiver, eu devolvo, é só mandar um mail – e desculpas pelo atraso de 20 anos, mas você sabe como são as coisas …] – e Borges…. sei lá. Eu lia, achava as idéias geniais, aí acabava o texto e eu voltava para meus amigos e perguntava: tá, mas o cara não escreve.

Me insultavam horrores, mas Letras, na PUC, em 1990, entre meus amigos  e as muitas amigas e “amigas” (uma amiga trabalhou comigo no Gênesis, anos mais tarde, e um dia me disse que eu dividia as mulheres em “amigas” e amigas – ela fazia as aspas com as mãos e eu morria de rir; mas esta Márcia nunca teve aspas, devo dizer logo, antes que o então-já-marido dela me mate) ….

Me insultavam horrores, mas Letras, na PUC, em 1990, era um grande calvinbol literário e nos divertíamos muito, entre os amigos que faziam Lit. Inglesa e xingavam até a morte o (aparentemente intragável, não sei, fiquei com medo e nunca li) Chaucer de “A Trolha Crescida” [Troilus and … pois é], os que citavam trechos de ópera em alemão (ou italiano ou o que fosse) e em meio a todas as discussões sobre “as gavetas universo”, que ainda não virou um conto porque eu nunca encontrei um final (e Soninha também não estava em condições de explicar o final da teoria, no dia; no dia seguinte, o fato de eu ou qualquer outro dos presentes sequer nos lembrarmos do enunciado básico já era enorme prova de memória).

Tudo isso é fato – ou, pelo menos, “meus” fatos – mas eu estava falando sobre a questão com Borges e Calvino.

Até hoje não li o “Viajante” e sei que, se eu escrevesse isso, um monte de gente ia mandar mails ou comentários dizendo: como é que você não leu o Viajante?

Eu ia ter que explicar que li outros livros do Calvino, que amo, enormemente, as “Seis Propostas para o Próximo Milênio” (embora jamais tenha passado da primeira) e que acho interessante “O Visconde Partido ao Meio” (esse eu terminei, essencialmente porque era fino).

Sou apaixonado pelas “Cidades Imaginárias”, um livro que eu amaria ter escrito, a tal ponto que é como chamo as “Cidades Invisíveis”, título real do livro do Calvino. Que nunca li, óbvio, porque o conceito é tão genial, e o potencial é tão incrível, e o que imagino que o livro possa ser é tão fantasticamente bom que morro de medo de ler e me decepcionar. Então, assim como muitas vezes é melhor você não transar com aquela mulher for-mi-dá-vel que você conheceu (quando as expectativas são altíssimas, cair na real é muito pior), por vezes é bom deixar o PDF fechado no disco rígido. (Tá, tá, eu tenho uma cópia impressa, mas prometi dar para alguém legal quando desativar a Biblioteca Física de Babel na próxima mudança, que é este ano!)

Calvino é, para mim, o escritor que mais se aproxima da minha idéia dos “Livros de Próspero”, o que é outra história engraçada porque eu não acho que meu conceito dos Livros de Próspero tenha a ver com Shakespeare.

Mas eu prometi que meus textos não iam passar muito de uma página, então deixo para falar de Borges antes, ou depois, dependendo completamente de onde você entrar no Jardim dos Caminhos que se Bifurcam.

Quarta-feira
jun162010

O que é ‘Traduzir’ - parte 1 de infinitas outras

Acho que é hora de eu retomar minha idéia de escrever sobre tradução, não do ponto de vista mais técnico, falando sobre práticas e preços e formas de fazer as coisas, mas pensando em algo um pouco mais amplo e tentando, talvez, ajudar o famoso “público geral” a entender um pouco melhor o que é feito durante uma tradução.

A primeira coisa a dizer é que traduzir palavra por palavra não funciona. A segunda coisa a dizer é que traduzir literalmente, frase a frase, continua não funcionando. A terceira coisa a dizer é que não há uma única forma de traduzir, não há uma única tradução possível e, na maioria das vezes, tradutores discordam de outros tradutores quanto às soluções encontradas.

Mas isso vale também (de outras formas) para medicina, consultoria, programação e tantas outras coisas, não é?

Tradução é um aprendizado constante, uma tentativa de superação a cada livro. Tradução é procurar, dentro de um livro, aquilo que é O Livro (nele), e tentar colocar isto para fora da melhor forma possível, deixando todo o resto (aquilo que não é O Livro) em segundo plano.

Se soa confuso, basta pensar em algo ainda mais confuso: nem sempre os autores sabem o que querem com uma palavra, uma frase, um parágrafo. Nem sempre os autores são bons ou seguem uma lógica razoável ou explicam algo de forma compreensível ou dominam realmente bem seu idioma. Ainda assim, e sobretudo nesses casos, o tradutor é obrigado a completar as lacunas, a encontrar um sentido vago, que seja, mas que ‘encaixe’ no texto e que, na melhor das hipóteses, seja tão aberto / vazio / ilógico / ambíguo quanto o original.

Como leitor, nunca se esqueça de que nós, tradutores, partimos deste ponto de partida já cheio de muitas limitações, que é O Original. Logo em seguida temos que lidar com uma segunda coisa complexa: todas as referências sócio-culturais filosófico-existenciais pop-internéticas etc. que um autor tem em seu idioma e que nós, aqui, em português do Brasil, não necessariamente temos.

Como tradutor, a primeira coisa que você precisa esquecer, ao começar uma nova tradução, é que existe um “autor” que precisa ser respeitado. E há uma coisa de que é preciso se lembrar, a cada livro: ele é único, ele precisa ser entendido e traduzido como algo único, ele não é “igual” ou “parecido” com quase nada que você já fez (infelizmente, hoje, isso não é mais verdade, mas seria um outro longo assunto). Além disso, o texto em sua tela só tem uma chance no mercado e depende, em grande parte, de você para viver e para poder chegar às pessoas que desejam ler aquelas palavras.

Devemos fazer uma pirueta paradoxal e, enquanto  apagamos essa figura autoritária do Grande Autor que é preciso respeitar, precisamos ter dentro de nós a idéia de que uma pessoa, um escritor (ou supostamente um escritor…) colocou seu tempo e (mais uma vez, supostamente) deu o máximo de si para criar aquele livro.

A arte da tradução está em ser capaz de apagar completamente o autor enquanto encontramos a voz mais próxima daquele autor, o tom mais harmônico para aquele livro. Uma tradução precisa ser transparente mas, para chegar a tal ponto, ela precisa antes encontrar a voz do autor em seu idioma original e transcriá-la no idioma de destino: no nosso caso, o português.

E precisa ficar fluente e natural. Uma das coisas que mais me irrita é quando pego um livro em português, começo a ler e uma buzina começa a tocar na minha cabeça dizendo “isso é uma tradução”. Não deveria ser assim: um texto traduzido deveria ser fluente a ponto de se parecer com o original.

Claro, nos casos em que o original é feito de cacos de sentido, ou sem sentido…. O melhor que podemos fazer é arrumar um pouco as coisas, mas arrumar demais seria “melhorar” o autor.

Traduções são desmontagens / remontagens de um livro, palavra por palavra, linha a linha. E, para cada trecho relativamente mal resolvido no original que um leitor poderia pular sem nem perceber, nós, tradutores, precisamos encontrar um sentido.

Há muitos outros sentidos para discutir e conversar quanto a traduções mas, para não ficar insensatamente longo, este texto interrompe o assunto aqui. [Como sempre, “Continua mais tarde…”]

Segunda-feira
mai242010

Por que acho que ‘livros de papel’ estão com os dias contados

Não falo muito sobre livros no site. É curioso, considerando-se que sou formado em literatura, tenho um mestrado em literatura e trabalho sobretudo como tradutor, mas também sou escritor e, algumas vezes, editor. Talvez eu leve o assunto a sério demais ou talvez eu ache que, como já trabalho com livros, falar sobre eles seria apenas mais trabalho.

Livros, contudo, são uma grande paixão – e por isso trabalho com eles.

Na última semana, li dois livros: “The Big Sleep” (Raymond Chandler, 1939) e “Do Androids Dream of Electric Sheep” (Philip K. Dick, 1968). Fora isso, estou relendo poesias do Bukowski (“The Days Run Away Like Wild Horses”), começando o novo livro do Albert-Laszlo Barabasi (“Bursts: The Hidden Pattern Behind Everything We Do”) e, como um editor está sondando se eu quero traduzir um autor que eu amo, mas cujo último livro que eu traduzi foi um pequeno parto, também estou lendo este livro (não posso dizer qual é) para ver o que acho da idéia de traduzi-lo.

O que os quatro livros têm em comum? Li ou estou lendo todos no Kindle DX, mesmo tendo versões impressas de 2 deles. O Kindle anda ‘carregado’ também com os capítulos do meu próprio romance, em estágios diversos de edição, coisas que preciso ler por questões acadêmicas e outros livros que quero começar a ler em seguida. Seria o suficiente para deixar uma mochila bem pesada.

Eu comprei de novo os 2 livros que já tinha em papel para poder ler no Kindle. Por que? Porque é mais fácil, porque ficam todos em um só lugar, porque não ocupam espaço, porque posso ler deitado na cama sem todos os inconvenientes de um livro físico [1]. Quando o iPad chegar, posso até desligar a luz de cabeceira que, por vezes, incomoda minha esposa e ler em baixo contraste, no escuro.

Só pela enorme facilidade que isso tudo representa, eu já ficaria feliz em aposentar quase todos meus livros físicos, substituindo-os aos poucos pelas versões eletrônicas.

Não tem como eu dizer o quão importante é, para mim, saber que não tenho mais que lidar com “papel”. Papel mofa (e sou alérgico, infelizmente, porque adoro livros antigos – não velhos, mas antigos!), papel envelhece (minhas edições de bolso americanas ou francesas de muitos livros estão em estado deplorável) e, pior que tudo isso, para quem tem muitos livros, papel ocupa um espaço insano.

Além disso, minhas estantes, onde só há livros, ocupam, hoje, 22m lineares. ‘Engordei’ quase 5m lineares durante o mestrado e suponho que, durante o doutorado, entrem uns 10m adicionais. Se eu for contar minha coleção de quadrinhos, a metragem aumenta mais um pouco.

Toda vez que eu me mudo – tem sido mais frequente do que eu gostaria nos últimos 6 anos, ainda que as razões em geral tenham sido boas – tenho que encaixotar cuidadosamente todos os livros e desmontar estantes (que, hoje, já são pranchas colocadas sobre ‘espinhas’ de metal, ambas fáceis de levar e reorganizar em outras configurações de espaço) e remontar estantes e chamar um marceneiro para fazer acertos. É pesado, chato, demorado, estraga alguns livros e custa algum dinheiro.

Acho que a equação mudou, e acho que as editoras deveriam prestar atenção nisso, se não quiserem acabar como as gravadoras acabaram. “Papel” não importa mais – o conteúdo importa. O que importa é a qualidade da edição eletrônica, o preço (os preços na Amazon por vezes variam muito de uma edição para outra), a tradução (bom, sou tradutor, então leio muito em inglês e francês, um pouco menos em espanhol e em italiano; mas não leio em grego nem em latim nem em alemão nem em russo….) e o valor agregado pelo trabalho editorial. Que, por enquanto, para quase todas as edições eletrônicas que tenho, é ZERO.

Tenho muito a dizer sobre o trabalho editorial, mas, por enquanto, queria só começar a falar sobre como os e-books não são nenhuma “revolução” – por enquanto, ainda são livros muito ‘caretas’ em seu formato – e sobre o quanto a mudança de suporte será, em poucos anos, irrelevante.

 

[1] Os “inconvenientes”: Onde colocar o livro quando você vai dormir de fato, os marcadores de página que vivem caindo, a posição incômoda de leitura na cama, tendo que segurar as páginas que já passaram e, por outro lado, o recurso ótimo de marcar trechos interessantes dos livros clicando em um botão do Kindle. Fim da encheção de saco com os belos Post It transparentes americanos que eu uso nos livros reais mas que acabam estragando o papel.