O que é ‘Traduzir’ - parte 1 de infinitas outras

Acho que é hora de eu retomar minha idéia de escrever sobre tradução, não do ponto de vista mais técnico, falando sobre práticas e preços e formas de fazer as coisas, mas pensando em algo um pouco mais amplo e tentando, talvez, ajudar o famoso “público geral” a entender um pouco melhor o que é feito durante uma tradução.
A primeira coisa a dizer é que traduzir palavra por palavra não funciona. A segunda coisa a dizer é que traduzir literalmente, frase a frase, continua não funcionando. A terceira coisa a dizer é que não há uma única forma de traduzir, não há uma única tradução possível e, na maioria das vezes, tradutores discordam de outros tradutores quanto às soluções encontradas.
Mas isso vale também (de outras formas) para medicina, consultoria, programação e tantas outras coisas, não é?
Tradução é um aprendizado constante, uma tentativa de superação a cada livro. Tradução é procurar, dentro de um livro, aquilo que é O Livro (nele), e tentar colocar isto para fora da melhor forma possível, deixando todo o resto (aquilo que não é O Livro) em segundo plano.
Se soa confuso, basta pensar em algo ainda mais confuso: nem sempre os autores sabem o que querem com uma palavra, uma frase, um parágrafo. Nem sempre os autores são bons ou seguem uma lógica razoável ou explicam algo de forma compreensível ou dominam realmente bem seu idioma. Ainda assim, e sobretudo nesses casos, o tradutor é obrigado a completar as lacunas, a encontrar um sentido vago, que seja, mas que ‘encaixe’ no texto e que, na melhor das hipóteses, seja tão aberto / vazio / ilógico / ambíguo quanto o original.
Como leitor, nunca se esqueça de que nós, tradutores, partimos deste ponto de partida já cheio de muitas limitações, que é O Original. Logo em seguida temos que lidar com uma segunda coisa complexa: todas as referências sócio-culturais filosófico-existenciais pop-internéticas etc. que um autor tem em seu idioma e que nós, aqui, em português do Brasil, não necessariamente temos.
Como tradutor, a primeira coisa que você precisa esquecer, ao começar uma nova tradução, é que existe um “autor” que precisa ser respeitado. E há uma coisa de que é preciso se lembrar, a cada livro: ele é único, ele precisa ser entendido e traduzido como algo único, ele não é “igual” ou “parecido” com quase nada que você já fez (infelizmente, hoje, isso não é mais verdade, mas seria um outro longo assunto). Além disso, o texto em sua tela só tem uma chance no mercado e depende, em grande parte, de você para viver e para poder chegar às pessoas que desejam ler aquelas palavras.
Devemos fazer uma pirueta paradoxal e, enquanto apagamos essa figura autoritária do Grande Autor que é preciso respeitar, precisamos ter dentro de nós a idéia de que uma pessoa, um escritor (ou supostamente um escritor…) colocou seu tempo e (mais uma vez, supostamente) deu o máximo de si para criar aquele livro.
A arte da tradução está em ser capaz de apagar completamente o autor enquanto encontramos a voz mais próxima daquele autor, o tom mais harmônico para aquele livro. Uma tradução precisa ser transparente mas, para chegar a tal ponto, ela precisa antes encontrar a voz do autor em seu idioma original e transcriá-la no idioma de destino: no nosso caso, o português.
E precisa ficar fluente e natural. Uma das coisas que mais me irrita é quando pego um livro em português, começo a ler e uma buzina começa a tocar na minha cabeça dizendo “isso é uma tradução”. Não deveria ser assim: um texto traduzido deveria ser fluente a ponto de se parecer com o original.
Claro, nos casos em que o original é feito de cacos de sentido, ou sem sentido…. O melhor que podemos fazer é arrumar um pouco as coisas, mas arrumar demais seria “melhorar” o autor.
Traduções são desmontagens / remontagens de um livro, palavra por palavra, linha a linha. E, para cada trecho relativamente mal resolvido no original que um leitor poderia pular sem nem perceber, nós, tradutores, precisamos encontrar um sentido.
Há muitos outros sentidos para discutir e conversar quanto a traduções mas, para não ficar insensatamente longo, este texto interrompe o assunto aqui. [Como sempre, “Continua mais tarde…”]
Reader Comments (1)
O que aprendi nesses quase seis anos de tradução (e dez "trabalhando com livros") é que você traduz, antes de tudo, a intenção do autor, não as palavras dele -- e que, muitas vezes, o grande problema é quando o próprio autor não consegue "completar o trajeto" entre intenção e execução a contento, ou seja, o texto é melhor na cabeça dele do que no papel. Isso nos deixa com a inglória tarefa de resgatar a intenção do autor e dar forma a ela na nossa língua de um jeito que não só faça sentido e seja fiel a essa intenção original, mas que "soe bem" aos ouvidos. A Minha Luta é fazer um texto cada vez mais redondo, harmonioso, mantendo o máximo dessa intenção -- mesmo quando ela não se cumpriu no todo-poderoso Original --, mas não me deixando sufocar por ela. Isso gera uma ironia interessante -- a de que um texto bem traduzido pode vir a ser "melhor" do que o Original. Engraçado, não? -- porque é o inverso do senso-comum de que somos todos uns traidores do texto alheio que deveríamos ser queimados em praça pública.