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Entries in ensaio (11)

Quarta-feira
mar232011

os excessos da técnica: piorando imagens perfeitas

Luis, da divertida newslist “Janela Lateral” [0], mandou um link para a versão ‘colorizada’ da clássica cena do beijo em NY no pós-guerra, uma daquelas imagens marcantes do século XX que já foi citada algumas vezes pelo cinema e da qual muitos lembram porque a mídia ama a mídia e vive recirculando imagens como esta.

‘Está na Wikipedia’, como sempre: http://en.wikipedia.org/wiki/V-J_Day_in_Times_Square

Luis mandou um link para uma versão colorida da imagem, em http://www.sedentario.org/imagens/um-beijo-classico-colorido-34609 

A primeira coisa em que pensei, vendo a versão colorida, foi “nossa, por que é permitido destruir uma foto clássica assim? por que alguém quer fazer isto e por que isso é colocado em circulação?” [1]. E depois pensei: “mas por que não?” [2]. Foi quando resolvi escrever este texto.

Tenho três coisas a dizer, resumidamente:

a. Obras clássicas, como esta foto [P&B, ‘original’], criam um ‘engrama’, uma marca. Elas passam a existir como coisa-em-si: a imagem da cena se torna mais presente do que a cena (que não teríamos visto, de qualquer forma, não fosse pela foto, que se torna parte de nossa memória coletiva). Em casos como este, digo que a representação se torna parte do Real e substitui um fragmento do Real, em vários sentidos. Em parte por isso minha questão de que uma boa ficção nunca será ‘realista’, porque a boa ficção deve ter a capacidade de transcender o Real para se tornar uma coisa-em-si. Ficção a sério pode se distanciar do Real o quanto quiser - ela vai criar seu próprio Universo, vai criar seu novo ‘lugar’ dentro do Real.

 

a1, resumo simplificado: Fotos clássicas têm o poder de se tornar memórias. Ninguém pode ‘colorir’ uma memória, isso falseia a memória, diminui sua força. A cor não faz parte, esta cor não acrescenta nada.

b. Um detalhe técnico: o resultado ficou péssimo. As cores estão artificiais, nem mesmo estão no plano da imagem - olhos treinados as percebem como uma camada adicional (‘overlay’) imposta ao original. É irritante e incompetente.

c. Se vocês pensarem no que eu acabei de dizer em [b] + [c], o que vem a seguir não é óbvio, mas é possível dar um pulo para entender uma outra pergunta que me faço: “por que, então, acho razoável que alguém reinterprete Shakespeare dentro de uma ultra-contemporaneidade e radicalize em montagens novas, mas ao mesmo tempo recuso uma simples manipulação digital?”. 

A resposta a [c] é simples: quando alguém reinterpreta Shakespeare, ou Mozart, ou refilma um clássico, a operação / o resultado só será bem sucedido se a nova versão tiver densidade (criativa, ficcional, estrutural) suficiente para se tornar um ‘novo original’. É possível fazer arte em cima da arte, mas é ppreciso que haja um acréscimo. “Pintar por cima com quadradinhos numerados”, contudo, é algo que um computador faria (como fez) e não acrescenta nenhum significado, nenhuma dimensão ao original. Pelo contrário, algo se perde, se dilui.

 

Meu último tópico é [d]:

[d] Alguém vai pensar que as garantias contra o direito de copiar - o copyright - deveriam servir para impedir esse tipo de manipulação indesejada. Não penso assim. O que está Lá Fora, na Rede, está Aqui Dentro, no Mundo. Informação na rede será modificada porque a idéia de “mudança” é inerente a um Mundo-em-Rede. Copyright é um conceito arcaico, intrínseco ao sistema de produção & comercialização específico dos século 18 a 20, e sempre me espanta quando acordo e noto que ele continua existindo. 

[d2] O que me assusta um pouco, contudo, é que não há muitos mecanismos na rede para que a ‘nova geração’ - meus filhos - sejam capazes de entender que essa imagem digitalmente estragada existia, antes, em outro formato. Dependendo [apenas] do circuito de disseminação e reprodução viral em que esta imagem entrar - ou deixar de entrar, por recusa sucessiva das pessoas na rede - ela irá se tornar, em pouco tempo, o novo ‘original’.

Meus filhos talvez nunca saibam que, um dia, houve uma foto ‘melhor’ que essa, algo que veio antes. Este efeito de apagamento & reescrita constante é, eu sei, inerente à rede. Se opor a isso é como ir a uma praia reclamar que as ondas apagam os desenhos na areia - o mar não vai mudar, a areia não vai se cristalizar.

Mesmo sabendo que o mar é o mar, a rede é a rede, penso que deveríamos encontrar formas de diferenciar o que “veio primeiro”, ou “se tornou mais importante”, já que acredito ser quase impossível falar de “original” [3].

De alguma forma, algo tem que fluir na contracorrente do efeito de apagamento da Rede. 

CDC

 

[0] http://listadajanela.blogspot.com

[1] Estou esperando o dia em que vão me xingar de “ludita”. Ou já estão chamando, mas não na minha cara. No dia em que eu puder ser considerado “ludita”, contudo, vão ter que mudar a definição do termo.  ;-) 

[2] Minhas perguntas típicas costumam ser “por que os computadores ainda não resolvem isso” e “por que somos tão apegados ao passado” e “por que a geração mais nova que eu não está conseguindo lidar com a tecnologia musical para criar algo novo e fica se apegando a uma reprodução do mesmo que mostra uma profunda incompreensão do que a tecnologia poderia estar fazendo” - ? - etc. De onde eu ter escrito [1], acima.

[3] Não sabemos, ou não acabamos de discutir se sabemos ou não, quem foi Shakespeare. Mas sabemos que algumas de suas obras foram ‘escritas por cima’ de outras. Camões escreveu seus sonetos, lindos, muitas vezes em cima de ‘motes’, que eram algumas poucas linhas de “domínio público” em cima das quais diversos poetas escreviam outras coisas. As melhores versões de muitas músicas não são as ‘originais’. A idéia de ‘originalidade’ também me parece ser algo que sobrou do Romantismo, mas este não é um tópico para um parágrafo apenas.

Sábado
set112010

Violência & Literatura ao longo da História

Prometi a meu bom amigo Luis, do Janela Lateral, que transformaria em ensaio (que ele vai enviar e eu vou publicar aqui, na minha “versão expandida”) um comentário que fiz esta semana sobre uma newsletter dele em que o assunto era a visão de Huxley e Orwell sobre distopias. 

Este é meu primeiro prólogo ao assunto – uma reescrita de um texto original de uma grande pensadora que jamais desejou se publicar (nunca entendi por que, mas respeito o desejo dela). Entretanto, a essas alturas, há muito em mails.

Leiam em itálico. O texto não é totalmente meu, mas retrabalhei muitas coisas (e a teia de teias com filmes é muito a minha cara, minha escrita).

- - -

O que pensei é que através da história o grande meio de se falar da violência sempre foi a literatura.

Na Teogonia, de Hesíodo, já há todo um discurso sobre o poder - quem detém o poder e como você pode ser castigado se não for muito esperto. Lutas familiares em torno da divisão das terras já existem em Os Trabalhos e os Dias, também de Hesíodo.

Homero nos fala do estabelecimento do poder no mundo helênico - os senhores das guerras, as alianças entre as Nações-Estados. Tróia é uma cidade mítica que a maior parte dos estudiosos acreditam nunca ter existido historicamente – metáfora, símbolo, meme.

As tragédias gregas da fase clássica nos relatam as brigas entre pais, filhos, soberanos, vassalos, estado, cidadãos. Discute-se o direito da Pólis e o lugar do sagrado  em Antígona; Édipo mata o pai, toma seu trono e depois arranca seus olhos para não ver o que tinha feito: usurpou o trono do pai e não ouviu o oráculo. O incesto, talvez ponto central do texto, hoje, não parece ser o que mais horrorizava os gregos.

A Bíblia do Antigo Testamento é de enorme violência. Não poderia ser filmada, hoje, e seria muito mal recebida como obra ficcional por seu caráter preconceituoso e pela crueldade. Só há um Deus verdadeiro em nome do qual as mais diversas atrocidades são cometidas, mas tudo bem, Deus justifica tudo, há um Propósito. Não saímos muito disso em 2000 anos – em vez de pedras, jogamos Tomahawks, contudo.

Na Idade Média, os trovadores encontravam meios de burlar a censura para falar do amor e do erotismo, ainda que sujeitos a determinados códigos. Muitas coisas que não podiam ser ditas eram transmitidas em forma de código nas artes – música, poesia, pinturas, esculturas. Leonardo escreveu muita coisa espelhando a própria escrita para não ser descoberto e Galileu usou retórica para se livrar da Santa Inquisição.

Um pouco antes, na fundação do imaginário anglo-saxão (e normando, e bretão…), as lendas arturianas nos falam de justiça, da busca pela Verdade, do amor, da prepotência. Na Távola Redonda, Artur – o Rei - e seus companheiros se reuniam como iguais em torno de uma mesa, numa volta à Ágora ateniense, em que uma elite de guerreiros tinha o direito a voto.

Temo pelo dia em que refilmarem o Rei Arthur com o Russel Crowe no papel de Arthur e prefiro ficar com a figura perturbada do Arthur de Excalibur, dirigido pelo John Boorman em 1981, mágico em sua releitura de Arthur; Merlin e Morgana são dois personagens formidáveis, maiores que o filme. [1]

Passamos para Cervantes e o romance de cavalaria, combatendo moinhos de vento, Quixote como o paradigma da utopia, mas Quixote era louco e, quando recobra a lucidez, desiste das lutas (?).

Shakespeare com suas tragédias bárbaras retoma o longo thread da violência, do estado, do poder, do sexo, dos ciúmes, dos conflitos e paixões e da amizade e traição e usura… Há algo que Shakespeare não tenha mencionado?

Não sei qual das tragédias é mais terrível. Ricardo III, por ter nascido feio e coxo, se acha no direito de fazer tudo o que pensa para atingir o poder que não se quer ameaçado; Macbeth, em que o casal se junta para dizimar todos que servissem de empecilho para a tomada do poder, em que os crimes eram tantos que Lady Macbeth não podia lavar o sangue de suas mãos. Titus Andronicus, um filme de terror em que os inimigos servem de um lauto banquete e a crueldade nua do texto serve para marcar melhor a sordidez e a violência da época. Há mais, porém não haveria espaço.

Camões escreve seu poema épico, conquistas e conquistados, a arrogância de Inez, que só pode ser rainha depois de morta.

Teria que mencionar De Sade, o Marquês que foi mais longe do que qualquer coisa que possamos pensar, hoje, e possamos admitir como possibilidade de escrita, hoje, mas De Sade será um capítulo à parte em minha tese.

Os séculos vão se passando e a violência pode estar mais encoberta ou pode ter se individualizado em serial killers ou se banalizado em thrillers nos quais “tudo explode”, então já não importa mais. Ainda assim, há uma veia aberta que permanece – corre sangue, true blood.

Nem sempre os escritores são queimados, mas queima-se a sua alma, os seus livros. Livros e bibliotecas sempre foram queimados – Alexandria, ao que parece, por um engano, omissão ou detalhe técnico -, mas há sempre um exemplar que se salva.

Os livros, a palavra, as narrativas continuam a ser ainda a maior forma de SubVersão.

Glória / CDC 2008 ~ 2010 [em andamento, suponho]

 

[1] Nada a ver com o artigo, mas o casting de Boorman é um daqueles que deixam um cinéfilo meio aturdido: não vou listar todo mundo (o IMDB lista), mas eu lembro que Liam Neeson estava lá; diabos, Helen “The Queen” Mirren estava lá, belíssima; e, mais fascinante para os trekkers, Patrick “Captain Picard” Stewart faz o papel de Leondegrance.

Quarta-feira
ago252010

A falácia da Googlewikiobjetividade

Lembrou-se de que os sonhos dos homens pertencem a Deus e que Maimónides escreveu que são divinas as palavras de um sonho, quando são distintas e claras e não se pode ver quem as disse.

Borges, Ficções [5]

 

O que me importa, nessa citação de Borges, além de ser incrivelmente bela (e o resto do conto potencialmente irrelevante face à potência da escrita de Borges nestes momentos de clarividência sobre o Universo, o Imaginário, o Sonho e a Escrita), é esta passagem extrema: são divinas as palavras de um sonho, quando […] não se pode ver quem as disse.

Meu ponto sendo que a Web, ou o que vou começar a chamar de “pensamento googlewikipédico” – um ultrarreferencialismo hiperabrangente -, assim como o conceito de referencialidade na escrita acadêmica em Humanas [7] e, no final, todos os sistemas de referência a que a Escrita por vezes se vê submissa são uma redução dessa divindade, uma tentativa de aniquilação do sonho, do imaginário e do ficcional. Para escrever, para transcender a escrita imediata dos autômatos da googlewikiobjetividade, é preciso praticar esse “não ver quem disse as palavras de um sonho”.

Assim como o Sonho precisa da escuridão (temporária) da Noite, o Imaginário precisa da escuridão (temporária) do Real.

Voltando ao início, porque nem comecei.

O maior problema de terminar um texto é que, quando eu começo, já tenho tantas idéias e ‘caminhos que se bifurcam’ empilhados na cabeça que é quase necessário que eu não termine. Tento resolver o que Borges nunca resolveu e experimento uma escrita necessariamente incompleta (não “aberta”, embora também o seja, mas francamente incompleta) e “em grafo”, para não voltar à coisa batida e nunca resolvida do “hipertexto” [1][3].

O que decidi, agora, foi que este texto nem tentaria terminar, mas provavelmente, nos próximos dias, vou repartir este texto em fragmentos que se bifurquem e espalhá-lo pelo site. Enquanto isso, deixo um pequeno mosaico de coisas para o leitor que quiser passear comigo.

CDC

[1] Tudo é “hipertexto” [3][8], hoje, porque a Web existe e a Web é uma representação do mundo mas é também o mundo-em-si. (De onde o projeto do meu próximo livro.) Achar que existe um “cyberespaço” que não é mais o mesmo que o aqui-agora (suponho que seja como definimos “espaço”) é uma ilusão um pouco perigosa [2].

[2] De onde eu insistir tanto que podemos continuar falando de “ciberespaço” ou de “internet banking” (vulgo “banco na internet”) e que certamente on-line faz sentido e é oposto a off-line. Mas quase nada é “virtual” e continuo não entendendo por que insistimos nesse termo-conceito. [2b]

[2b] A notar que “virtual” se opõe a “real” e a “concreto”. Não sei bem o que faço com o Imaginário, ele parece ter um estatuto a parte ou, pelo contrário, ser algo problematico dentro dos topoi criados por virtual / real / concreto. Preciso retomar isso. [6]

[3] O lugar mais patético para ‘vivenciar’ isso é a Wikipedia. Depois que se perderam completamente (IMHO) do que pudesse ser um projeto interessante de, digamos, um neo-Iluminismo que viesse comentar o mundo, para se tornar uma tentativa tacanha e necessariamente impossivel e falha de mapear o mundo e todas as palavras e conceitos e coisas do mundo [4], bom, um artigo sobre uma série de TV tinha 95 referências [9]

[4] Vide Borges, naquele conto que não lembro mais qual era nem onde está sobre os Cartógrafos de ___, onde havia um mapa que era tão exato que precisava (e pretendia) ser maior e mais amplo do que a realidade em si. A Wikipedia é a mesma coisa, exceto que alguém por lá se esqueceu que o conto era ficcional, potencialmente uma crítica irônica e certamente apontava para uma impossibilidade e um paradoxo. Alguém mande mail para a “Chefia” da Wikipedia, por favor, e peça para que eles retornem a essa coisa desagradável que é o deserto do Real.

[5] Editorial Teorema / Bibliotex, provavelmente: 2000; provavelmente: Tradução de José Colaço Barreiros.

[6] Leitores atentos terão notado que eu intencionalmente não estou falando do livro “O que é o Virtual?” de Pierre Lévy, trad.de Paulo Neves, do qual fiz a revisão técnica e, sei lá, talvez um pouco de revisão da tradução.

[7] A idéia de que as “Artes e Ciências Liberais”, como dizem os gringos, sejam “Ciências Humanas” é ainda pior do que ter esse “Ciências” junto de “Artes”. Que isso venha de uma antiga divisão dos tempos da fundação da Sorbonne, sei lá. Que isso tenha sido parte do ideário positivista dos sécs. 19 e 20, que seja. Que tenha sobrevivido ao final do século 20, deixado de notar o Legado de Brecht, passado impune pelo Surrealismo e pelo Modernismo e gerado os horores que gerou, em crítica literária, crítica, pensamento e Arte, como um todo … eu lamento.

[8] Quando fizemos a revista “34 Letras”, era comum acordo tácito e jamais explicitado, entre nós, projetistas, criadores, editores – “makers” – que a inexistência de qualquer vinculação (a nada) do nome da revista era nossa forma clara de falar sobre o que, na época, não podíamos, não queríamos ou não sabíamos dizer: o pensamento pós-moderno, e como construir dentro dele. O último número da revista, logo antes de ser detonada pelo Plano Collor, era sobre “O Lixo”, se bem me lembro. Mitológico, esse arquivo um dia existiu nos Macs que a revista então usava e, conta a lenda (isso e algumas conversas já antigas com a Bia Bracher), se perdeu em algum momento de não-backup. “O Lixo” tentava falar sobre, nas palavras dos Titãs (que não têm nem tinham nada a ver com isso) “o que não é o que não pode ser o que não é”. Tenho a impressão, por vezes, olhando para trás e tecendo conjecturas amplas, que foi naquela época que comecei a pensar sobre a teoria de topoi, “os lugares das coisas” [9], porque “o que não pode ser” não é um “não lugar”, como gostaria muito que fosse um certo Auger e uma tal Teoria da UltraSupraModernidade; “o que não pode ser” é muito mais antigo, remetendo tanto a Aristóteles, com seus topoi [10], mas também aos conceitos básicos do Estruturalismo, já que Saussure (vamos incluir L-Strauss aqui) fala o tempo todo sobre “o que não pode ser” quando estipula que determinadas formas não ocorrem num idioma porque não podem ocupar o mesmo lugar já ocupado por uma outra forma. É uma simplificação extrema, mas faz parte do pensamento Estruturalista. Causa-me espanto que possa haver uma teoria dos Não-Lugares [11] e que isso seja considerado qualquer coisa além de uma revisão do Estruturalismo, já fora de tempo e fora de lugar. De qualquer forma eu queria apenas fazer uma anotação sobre… é, sobre um monte de coisas que estão nesta nota.

[9] in, mas não exatamente lá, Topoi, Aristóteles. Gostaria de dizer que li o original em grego mas, na prática, li uma bela tradução em português da Casa da Moeda de Portugal.

[10] Embora Aristóteles não estivesse preocupado exatamente com isso, eu é que “remeto” a Aristóteles como se sequer fosse razoável fazê-lo, mais como imagem-sonho de algo que Aristóteles poderia ter dito do que como ‘referência’ – não há referência possível, aqui.

[11] Platão: o que é, é; o que não é, não é. Voltar, então, a discussão sobre o que seria um Ser que Não é? Eu diria o que acho que Platão disse: se um Ser Não É, então ele é da ordem do Falso. Mas, enfim, isso também é simplificar um longo debate sobre como funciona o Ser em Platão, e não acho isso nada trivial.

Terça-feira
jul272010

O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam

PS – O título da (provavelmente excelente) tradução de Davi Arrigucci Jr. para a Companhia das Letras é “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”. Nada contra, nem poderia. É só que eu costumo enveredar por caminhos mais vezes do que caminho por veredas, então ‘ouço’ o título como “caminhos que se bifurcam”. Além disso, por conta do que o texto de Borges diz e de como interpreto o jogo de sentidos, não posso pensar em ‘veredas’ - mas continuar discutindo isso seria uma bifurcação do rumo original.

Segue, a título de rápido exemplo de que preciso para continuar o que já pensei mas ainda não escrevi, o trecho central do conto de Borges. Em espanhol. Que é essencialmente o mesmo que português, basta ler sem pensar que não é!   ~;0)

Antes de exhumar esta carta, yo me había preguntado de qué manera un libro puede ser infinito. No conjeturé otro procedimiento que el de un volumen cíclico, circular. Un volumen cuya última página fuera idéntica a la primera, con posibilidad de continuar indefinidamente. Recordé también esa noche que está en el centro de las 1001 Noches, cuando la reina Shahrazad (por una mágica distracción del copista) se pone a referir textualmente la historia de las 1001 Noches, con riesgo de llegar otra vez a la noche en que la refiere, y así hasta lo infinito. Imaginé también una obra platónica, hereditaria, trasmitida de padre a hijo, en la que cada nuevo individuo agregara un capítulo o corrigiera con piadoso cuidado la página de los mayores. Esas conjeturas me distrajeron; pero ninguna parecía corresponder, siquiera de un modo remoto, a los contradictorios capítulos de Ts’ui Pên. En esa perplejidad, me remitieron de Oxford el manuscrito que usted ha examinado. Me detuve, como es natural, en la frase: Dejo a los varios porvenires (no a todos) mi jardín de senderos que se bifurcan. Casi en el acto comprendí; el jardín de senderos que se bifurcan era la novela caótica; la frase varios porvenires (no a todos) me sugirió la imagen de la bifurcación en el tiempo, no en el espacio. La relectura general de la obra confirmó esa teoría. En todas las ficciones, cada vez que un hombre se enfrenta con diversas alternativas, opta por una y elimina las otras; en la del casi inextricable Ts’ui Pên, opta — simultáneamente — por todas. Crea, así, diversos porvenires, diversos tiempos, que también proliferan y se bifurcan. De ahí las contradicciones de la novela. Fang, digamos, tiene un secreto; un desconocido llama a su puerta; Fang resuelve matarlo. Naturalmente, hay varios desenlaces posibles: Fang puede matar al intruso, el intruso puede matar a Fang, ambos pueden salvarse, ambos pueden morir, etcétera. En la obra de Ts’ui Pên, todos los desenlaces ocurren; cada uno es el punto de partida de otras bifurcaciones. [1]

Retomo, altero: em todas as ficções, cada vez que um autor se depara com diferentes alternativas, opta por uma delas e elimina todas as outras. Na obra de Ts’ui Pên, contudo, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações.

Que isso tenha dado origem à Mecânica Quântica, é inquestionável. Heisenberg, von Neumann, Einstein, Böhr e meu querido Schrödinger, entre outros (tá, inclui o Hilbert, um cara legal) estavam discutindo o assunto em 1920 e poucos. Claro que prenunciaram a obra de Borges, que materializaria o conceito de quântica em sua ficção uns anos mais tarde.

Que este conto seja citado de forma muito clara no brilhante (mas quase ninguém concorda comigo e minha esposa e cancelaram) seriado estadunidense FlashForward … bom, a premissa do livro (de Robert J. Sawyer) que deu origem à série poderia muito bem ser resumida ao conto de Borges, numa versão um pouco diferente, ampliada, em outro contexto, com uma premissa muito melhor do que, chutando, 80% do que se produz em TV. Perdeu-se, já era, bifurcamos, vamos adiante.

Minha questão é outra. Minha questão é o que você faz quando acredita – e acredita como autor, não só como físico – … o que você faz quando acredita que é preciso, mesmo, dar conta de todas as possibilidades a cada vez que, num texto, há uma bifurcação? Você elimina as outras, como é costume fazer para tornar uma história “coerente”? Você escreve um livro circular? Você escreve um romance no qual o último capítulo é igual ao primeiro, porém diferente, e tudo que vem no meio pode ser lido como meta-referências ao próprio livro que o leitor lê? Você inventa uma escrita hipertextual em 1940?

Bem, talvez você não consiga escrever, porque o Infinito, assim como as idéias infinitamente interessantes, são inerentemente paralisantes para um autor. Então, frente ao conceito da Biblioteca de Babel, à idéia das ruínas circulares – uma metáfora linda sobre o ato de escrever, mas é um conto chato, medíocre - talvez você fique a tal ponto preso nas múltiplas possibilidades que o tecido da escrita não possa se adensar.

Naturalmente, há vários desfechos possíveis. E um deles é retomar o tema sucessivamente em vários contos: Pierre Menard, ‘Tlön, Uqbarm Orbis Tertius’, As Ruínas Circulares, A Biblioteca de Babel …. todos ‘dentro’ do Jardim de Borges. Certamente a idéia contida na “coleção de idéias” do Jardim de Caminhos que se Bifurcam é uma das coisas mais formidáveis produzidas em literatura no século 20. A questão é que, embora isso faça de Borges um gênio, um homem com idéias muito adiante de seu tempo, muito peculiarmente isso não faz dele um bom escritor – pelo contrário, me parece que é justamente isso que impede que a escrita de Borges deixe seu eterno devir [2] para que suas idéias se concretizem, não em um Jardim, mas em uma escrita.

É hora de bifurcar, também, até porque acho que é preciso falar de Fernando Pessoa quando se fala de Borges e de ficções da escrita.

File / Save / Close. I’m out there.

[1] Jorge Luis Borges, Ficciones, “El jardin de senderos que se bifurcan”, 1941.

[2] “Devir”, aqui, como o campo de potenciais quânticos que podem se realizar, mas talvez nunca se realizem de fato; e ficção não é uma equação matemática a ser lida como uma função de onda probabilística, o que seria bem interessante, contudo.

Domingo
jul112010

As vuvuzelas sugaram a emoção dos estádios

Me lembro de quando era pequeno e meu pai me levava ao Maracanã. Sou ateu desde pequeno, e meu pai é flamenguista doente. Aquele ritual todo de empurrar a bola de um lado para o outro me parecia um pouco enfadonho, mas a torcida sempre me emocionou.

O Maracanã em dia de Fla-Flu (ou qualquer outro jogo decente) é uma igreja em fúria, cheia de apaixonados, que soltam fogos, batem no que tiverem para bater (de tambores aos torcedores do time adversário) e, sobretudo, gritam muito.

Acho que deve ser um ritual mágico, para qualquer jogador, lutar contra o time adversário enquanto, ao mesmo tempo, está fazendo um show de rock e interagindo com aquela multidão, seus fãs. O estádio e o jogo eram uma coisa só – a explosão após um gol, a expectativa antes de uma cobrança de falta, a decepção com uma bola na trave, a irritação com o juiz, os cânticos criativos que cada torcida inventava para louvar um ídolo ou infernizar a vida dos adversários… Havia poesia em cada uma dessas coisas, era lírico, uma ópera, música.

Começou a copa de 2010 e não teve nada disso. Se teve, foi baixinho, ninguém ouviu, pois quase tudo ficou abafado pelo enxame irritante de vuvuzelas. Quem inventou aquilo?; quem achou que aquilo tinha algo a ver com futebol?; quem cometeu o crime de deixar que aquilo abafasse a emoção das torcidas com o som tolo, feio e chato de uma mosca varejeira?

Todo músico sabe que a música é baseada em silêncio. Sem silêncio, sem espaço entre as notas, você tem ruído, não música.

Da mesma forma, as vuvuzelas não parecem ser uma ‘torcida’ de fato: são apenas ruído insano, e me entristece pensar que, até mesmo no futebol – e ao menos nesta copa -, as coisas tenham tomado o rumo do abestalhamento, do emburrecimento, e que as explosões de emoção das torcidas tenham se reduzido a isso:

zuuuuuuuuum.

Para onde vamos depois: clínica de surdez ou asilo psiquiátrico?